sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

O SINO DE OURO

Júlia Lopes de Almeida
           Maria Matilde tinha um sonho: fazer construir rente à baía de São Marcos, na sua linda cidade de São Luís do Maranhão, uma torre alta, muito alta, encimada por um enorme sino de ouro com os nomes de todos os Estados do Brasil, formados com pedras preciosas. Quando o sino badalasse, reboariam na atmosfera as suas sonoridades, acompanhadas pelo ritmo das ondas, e, quando os astros o iluminassem, rutilaria no espaço esplendidamente.
          Mas a velha louca parecia não ter um vintém de seu. Morava num casebre em ruínas, vestia-se de trapos imundos, comia só raízes e ervas do mato e bebia água na concha da mão encarquilhada e ossuda. Não tinha dinheiro para as necessidades da vida, porque, se lhe davam uma esmola, ela corria a escondê-la para o sino de ouro, e ia iludir a fome com os sobejos atirados pela caridade, ou um rabo de peixe chupado à porta de um pescador. Ninguém o sabia, mas o seu colchão estava já tão cheio de moedas que lhe magoava o corpo miserável, a ponto dela preferir estender-se no chão duro, sobre uma esteira esgarçada.
          Lá tinha a sua idéia fixa, e, para realizá-la, seria preciso uma fortuna! A sua torre de ouro, com um sino cravejado de pedras preciosas, maravilharia o mundo inteiro... Em casa ou na rua a visionária falava só, gesticulando, movendo no ar os dedos nodosos, de unhas grandes.
          As crianças fugiam atropeladamente ao ver-lhe, de longe, o busto esguio; os adultos afastavam-se daquela imundície, e ela passava sem ver ninguém, resmungando: — Quando o sino de ouro fizer: ba-ba-la-ão! ba-ba-la-ão! todo mundo dirá: “É o coração do Brasil que está batendo... Que lindo é e como bate bem!”   E ela ria-se, sacudindo os longos braços magros, a repetir pelas ruas sossegadas: — O coração do Brasil está parado... quero fazê-lo palpitar com força... Ba-ba-la-ão! Dão! dão!
          Uma noite de chuva e de relâmpagos, Maria Matilde chegou encharcada e tremendo com o frio da febre à sua choça; mas, logo ao entrar, esbarrou com uma pobre rapariga da vizinhança, que se ajoelhou chorando a seus pés.
          Qual não foi o seu espanto! se ninguém a procurava nunca... Uns tinham medo da sua morada de louca, supunham-na outros feiticeira, bruxa, o diabo em pessoa!
          Ela parou no umbral, estarrecida; a outra exclamou de mãos postas:
          — Maria Matilde, tem dó de mim! Minha madrasta, aquele má mulher, expulsou-me de casa e aos meus irmãozinhos, que foram mendigar por essas ruas quase nus... É por eles que eu choro. Dá-me um filtro, Maria Matilde, para abrandar o coração de minha madrasta e fazer com que meu pai abra a sua porta aos filhos pequeninos, que são inocentes e estão passando fome, sofrendo frio, com medo do escuro, por essas praias.    Se for preciso o meu sangue para salvar os anjinhos, toma-o! Abre-me as veias, aqui tens o meu corpo!
          E a moça desnudava-se oferecendo os pulsos e o colo suplicemente.
          Maria Matilde, de olhos arregalados, dobrou-se toda sobre a linda da moça:
          — Darás a vida por teus irmãos?
          — Darei a vida!
          — Jura?
          — Juro! Aqui me tens, mata-me, se para bem deles a minha morte for precisa. Dizem que és feiticeira, mas o que tu és é surda! Não prolongues a agonia de meus irmãos, Maria Matilde! Aqui me tens!
          A velha considerou a rapariga com espanto. Depois, rapidamente, correu ao catre, sumiu as mãos trigueiras nos rasgões da enxerga e atirou punhados de moedas, vertiginosamente, para o regaço da moça estupefata.
          — Teus irmãos estão nus? Toma, vai comprar agasalho para eles! Têm fome? Dá-lhes pão...muito pão... Toma! Toma! Toma! Vai para junto deles, boa irmã, vai com Deus!
          A moça aparava aquelas moedas inesperadas num delírio de felicidade. A velha deu-lhe tudo, tudo. Depois empurrou-a violentamente pela porta fora, fechou-se por dentro e desatou a chorar.
          Como haveria ela agora de comprar o sino de ouro e construir a sua alta torre rutilante? Teria de recomeçar pelo primeiro vintém... e as costas doíam-lhe tanto... tanto! Ao menos nessa noite poderia dormir sobre o seu colchão... O que a fazia tremer eram aquelas cobrinhas de gelo que andavam a passear pela sua espinha... A cabeça estalava-lhe.
          Era a febre! Maria Matilde debateu-se toda a santa noite, com os lábios secos, os olhos em fogo, as roupas, ainda alagadas da chuva, unidas aos membros doloridos.
          Pela madrugada serenou e rompia a manhã gloriosa, quando ela ouviu a voz dulcíssima de um anjo dizer-lhe à cabeceira:
          — Construíste esta noite a tua torre e por ela subirás ao céu!
          Maria Matilde atirou para fora do catre as pernas finas, aconchegou aos rins os molambos da saia, aos ombros os farrapos de um xale e correu ansiosa para a praia.
          A cidade dormia ainda; só os passarinhos despertavam cantando. No largo mar azul o sol nascente espelhava uma coluna de ouro tão larga e tão longa que ninguém lhe poderia calcular as dimensões.
          No ar voavam gaivotas até além, às nuvens de ametistas e de rubis, que engrinaldavam no horizonte a torre deslumbrante. Era a pedraria do sino que reluzia! Sumindo nela os olhos felizes e fascinados, Maria Matilde sacudiu os longos braços, gritando vitoriosa, antes de cair redondamente na areia fria:
          — Ba-ba-la-ão! ba-ba-la-ão! Dão... Da...ão!
          Quando a miragem do sol se desfez, já a louca tinha subido pela torre de ouro até o céu!
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JÚLIA Valentina da Silveira LOPES DE ALMEIDA  nasceu na então Província do Rio de Janeiro, em 24 de setembro de 1862, filha do Dr. Valentim José da Silveira Lopes, professor e médico, depois Visconde de São Valentim, e de D. Adelina Pereira Lopes. Mãe dos escritores Afonso Lopes de Almeida, Albano Lopes de Almeida e Margarida Lopes de Almeida. Viveu parte da infância em Campinas, SP, onde estreou sua carreira de escritora, 1881, escrevendo na Gazeta de Campinas. Desde cedo mostrou forte inclinação pelas letras, embora no seu tempo de moça não fosse de bom-tom nem do agrado dos pais, uma mulher dedicar-se à literatura. Numa entrevista concedida a João do Rio entre 1904 e 1905, confessou que adorava fazer versos, mas os fazia às escondidas. Em 28/11/1887 casou-se com um jovem escritor português, Filinto de Almeida, à época diretor da revista A Semana, editada no Rio de Janeiro, que recebeu a colaboração sistemática de Dona Júlia por vários anos. Sua produção literária foi vasta, mais de 40 volumes abrangendo romances, contos, literatura infantil, teatro, jornalismo, crônicas e obras didáticas.
Em sua coluna no jornal O País, durante mais de 30 anos, discutiu variados assuntos e fez diversas campanhas em defesa da mulher. Foi presidenta honorária da Legião da Mulher Brasileira, sociedade criada em 1919; e participou das reuniões de formação da Academia Brasileira de Letras, da qual ficou excluída por ser do sexo feminino.
Sua coletânea de contos Ânsia Eterna, 1903, sofreu influência de Guy de Maupassant e uma das suas crônicas veio a inspirar Artur Azevedo ao escrever a peça O dote. Em colaboração com Felinto de Almeida, seu marido, escreveu, em folhetim do Jornal do Comércio seu último romance A casa verde, 1932, vindo a falecer dois anos depois, 30/05/1934, na cidade do Rio de Janeiro. 
  http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/
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