sábado, 12 de novembro de 2016

QUINQUILHARIAS DE MEU MATULÃO

 (*) José de Anchieta Batista
Fui criança, fui adolescente, fiz-me adulto, vaguei por estes Brasis e, finalmente, me tornei um velho. Sou agora um idoso, com o peso, os “privilégios” e as proibições que a idade impõe, ouvindo a todo momento um rosário de “não pode isso”, “não pode aquilo”.
Viajo no tempo até minha infância. Lá está Dona América, minha cuidadosa e amada mãe. Lá está Seu Batista, meu honrado pai e meu primeiro herói. Lá estão meus irmãos, minhas irmãs, meus colegas, minhas professorinhas.
Ontem, era eu um menino, com meu pequeno universo, minhas curiosidades, minhas travessuras, minhas fantasias. Nascido em meados do século passado, tornei-me ancião, e nem senti o tempo passar. Mas ele passou ... e quase com a duração de um relâmpago. Foi assim mesmo, minha gente. Realmente eu nem percebi a correria desembestada com que os anos se foram. E me vejo hoje, não mais que de repente, aproximando-me dos setenta e dois anos de vida.
Parece mentira, mas os detalhes daquele mundo longínquo vieram grudados em mim, como se fossem tatuagens irremovíveis. Conduzo uma espécie de museu, onde vou guardando minhas quinquilharias afetivas. É ali que está armazenado o meu vivíssimo arquivo de recordações.
Na verdade, é bem chocante admitir que o tempo passou.  Mas passou. E diante disso, o que me restou de tudo aquilo que me embalou na mais tenra idade?
Lá estão, em meu áspero Sertão da Paraíba, o povoado de Aparecida, onde sou hoje um mero desconhecido, a rua onde morei, o grupo escolar, o Rio do Peixe, a velha ponte, os pés de oiticica, o caminho para o roçado de meu pai, o campo de futebol, as fogueiras de São João, os brinquedos que eu mesmo fazia, meus animais de estimação, e tudo o mais.
E aqui vou eu carregando o meu matulão, com o que juntei em minha estrada. Não sei quem hoje sou, haja vista a imensa metamorfose que me foi imposta nos caminhos que percorri. Avalio tudo, de ponta a ponta, e me vem a certeza de que me tornei um enigma que não sei decifrar. Sinto-me a síntese de tudo que vivi. Sou um mosaico em que os pedaços não se somam com similitude e harmonia. As regras, diabólicas ou benfazejas, da tão hipócrita sociedade, os momentos da vida, as pessoas, as coisas, foram me falseando a essência, com as suas imposições mexendo em minha idiossincrasia, e deixando em mim seus fragmentos, suas cores, seus odores, suas alegrias, seus sofreres, tudo colado em meu eu, à maneira dos carrapichos que se prendem às nossas vestes. Hoje estou somado a tudo isso, e vejo que me tornei nada mais nada menos do que a média inexata de tudo.  O que me alivia o fardo são minhas convicções espiritualistas de que tudo continua depois da “morte”, quando poderei ainda melhorar os dados de minhas contas, diante da Contabilidade Universal.
O tempo realmente passou, fazendo de mim um colecionador de momentos bons e ruins.
Lá está minha primeira namorada e meu primeiro amor; lá estão minhas paixões e meus sonhos de adolescente, e lá estão meus amigos, muitos dos quais nunca mais encontrei.
Sofri o diabo pela vida afora, mas consegui sobreviver a tudo, buscando sempre não expulsar de mim a criança que fui, nem o mundo que a cercava.  Nesse caminhar, amei, fui amado, sorri, chorei, lutei como um maluco e, em tudo, fui herói e vilão ao mesmo tempo. Não atingi a tão apregoada Sabedoria, que deveria estar comigo na velhice. Simplesmente não a encontrei, porque diante da verdade maior, não tinha os “olhos de ver” nem os “ouvidos de ouvir”. E certamente por causa disso não plantei nem colhi o que Deus esperava de mim. Acho que agora já não dá mais tempo.  
Ah, meu Deus, por que passou o tempo? Sequer pude compreender o real significado da vida.
Estas minhas reflexões são feitas, como se repentinamente eu acordasse, possuído de enorme ressaca, esfregasse os olhos, identificasse o mundo em derredor e, por fim, ouvisse a realidade gritar aos meus ouvidos:
- Seu babaca, o tempo passou!
Agora quase tudo virou reminiscências. E eu não consigo revirar minha bagagem, cheia dessas quinquilharias, sem que os momentos já vividos não doam em minha alma.
É, amigos. Parece meio louco este meu sentir, mas os espectros de toda a caminhada estão vivíssimos em mim. Nada morreu, tudo viaja comigo, aqui no meu matulão.

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