domingo, 11 de dezembro de 2016

HISTÓRIA DE UM CÃO

(*) Luis Guimarães Júnior                                   
Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo;
Para dizer numa palavra tudo,
Foi o mais feio cão que houve mundo.
     Recebi-o das mãos dum camarada.
     Na hora da partida. O cão gemendo
     Não me queria acompanhar por nada;
     Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.
O meu amigo, cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava ...
"Adeus!" - me disse, - e ao afagar Veludo,
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
     “Trata-o bem. Verás como o rafeiro
     Te indicará os mais sutis perigos;
     Adeus! E que este amigo verdadeiro
     Te console no mundo ermo de amigos.”
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
     Nas longas noites de luar brilhante,
     Febril, convulso, trêmulo, agitando
     A sua cauda - caminhava errante,   
     À luz da lua - tristemente uivando.
Toussenel, Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores,
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
     Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
     Cinco meses depois, do meu amigo
     Um envelope fartamente cheio:
     Era uma carta. Carta! - Era um artigo.
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes;
     Gabava o steamer que o levou; dizia   
     Que ia tentar inúmeras empresas;
     Contava-me também que a bordo havia
     Toda a sorte de risos e belezas.
Assombrara-se muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo.
Citava o caso d'uma passageira ...
Mil coisas mais de que me não recordo.
     Finalmente, por baixo disso tudo,
     Em nota bene do melhor cursivo
     Recomendava o pobre do Veludo,
     Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão, tranquilo e atento,
Me contemplava, e creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
     Depois lambeu-me as mãos, humildemente,
     Estendeu-se aos meus pés, silencioso,
     Movendo a cauda, - e adormeceu contente,
     Farto dum puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente, um dia,
Vi-me livre daquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher dum velho carvoeiro.
     E respirei: - “Graças a Deus! Já posso”
     Dizia eu “viver neste bom mundo,
     Sem ter que dar diariamente um osso
     A um bicho vil, a um feio cão imundo”.
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora,
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca cismadora.
     Mal respirei, porém! Quando dormia,
     E a negra noite amortalhava tudo,
     Senti que à minha porta alguém batia:
     Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito:
E - de cansado - foi rolar dormindo,
Como uma pedra junto do meu leito.
     Praguejei furioso. Era execrável
     Suportar esse hóspede importuno
     Que me seguia como o miserável
     Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em voz alta e confessá-lo:
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo.
     Zunia uma asa fúnebre dos ventos;
     Ao longe o mar na solidão gemendo,
     Arrebentava em uivos e lamentos...
     De instante a instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto,
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto,
E a chuva meus cabelos fustigava...
     Despertei um barqueiro. Contra o vento,
     Contra as ondas coléricas vogamos;
     Dava-me força o torvo pensamento:
     Peguei num remo - e com furor remamos.
Veludo, à proa, olhava-me choroso,
Como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
     No largo mar ergui-o nos meus braços,
     E arremessei-o às ondas de repente...
     Ele moveu gemendo os membros lassos
     Lutando contra a morte! Era pungente!
Voltei à terra - entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas, moribundo.
     Mas ao despir, dos ombros meus, o manto,
     Notei - oh grande dor! - haver perdido
     Uma relíquia que eu prezava tanto!
     Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido
Contra o meu coração constantemente,
E o conservava no maior recato,
Pois minha mãe me dera essa corrente,
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
     Certo caíra além no profundo mar,
     No eterno abismo que devora tudo;
     E foi o cão, foi esse cão imundo
     A causa do meu mal! Ah! se Veludo
Duas vidas tivera, duas vidas,
Eu arrancava aquela besta morta,
E aquelas vis entranhas corrompidas!
Nisto senti uivar à minha porta.
     Corri, abri ... Era Veludo! Arfava;
     Estendeu-se aos meus pés  e docemente,
     Deixou cair da boca, que espumava,
     A medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? - Ajoelhado
Junto do cão - estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo; estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
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LUIS Caetano  Pereira GUIMARÃES JUNIOR
Diplomata, poeta, romancista e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 17 de fevereiro de 1845, e faleceu em Lisboa, Portugal, em 20 de maio de 1898. Foi um dos dez Eleitos membros para se completar o quadro de fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde Criou uma Cadeira n. 31, que tem como patrono o poeta Pedro Luís.
Era filho de Luís Caetano Pereira Guimarães, português, e de Albina de Moura, brasileira. (Há uma divergência na data de seu nascimento: Sílvio Romero indica o ano de 44; outras fontes registram 1847. A filha do poeta, primeiros D. Iracema Guimarães Vilela, forneceu uma Múcio Leão de dados de 45). Fez os estudos no Rio Rio de Janeiro. Aos dezesseis anos escreveu o romance Lírio Branco, dedicado a Machado de Assis. Partiu para São Paulo, a fim de continuar os estudos PREPARATÓRIOS, e lá recebeu uma carta de Machado de Assis, animando-o um Prosseguir na carreira das letras. Fez o curso de Direito não Recife entre 1864 e 1869. Ali assistiu ao desenvolvimento da "escola condoreira", tomou parte em que mais Diretamente ou menos. Continuou a escrever, multiplicando-se no jornalismo e escrevendo livros de contos, comédias e poesias. Aos 28 anos, apaixonado por Cecília Canongia, cogitou de se casar. Sua situação não jornalismo e nas letras, embora brilhante, não lhe proporcionava os Meios estavelmente para viver. O poeta e amigo Pedro Luís, então ministro dos Negócios Estrangeiros, Oferece-lhe um lugar na diplomacia como secretário de Legação em Londres. De 1873 um 1894, passou por vários outros postos, em Santiago do Chile, em Roma, onde serviu sob as ordens de Gonçalves de Magalhães, e em Lisboa, foi, depois, como enviado extraordinário, para Veneza. Em 1894, transferiu-se aposentado, já, para Lisboa, onde veio falecer um.
Em Lisboa, como secretário de Legação, teve ocasião de conhecer alguns dos mais ilustres espíritos do tempo. Foi amigo de Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Fialho de Almeida. Distinguia-se como poeta e como homem do mundo. Ramalho Ortigão assim o definiu: "Como poeta, ele é um primeiro adido da legação A elegância ... O seu estilo tem um lavor de renda, uma suavidade de veludo e ar um perfume de toilette". Tinha predileção pelas cidades da arte e do pensamento. O poeta celebra Londres, celebra Roma. Mais que tudo porém, recorda o seu país. Suas principais obras são Corimbos e Sonetos e rimas. O primeiro representa a fase em que vivia no Brasil (1862 um 1872); o outro, o período em que residiu na Europa. A Apreciação de críticos e estudiosos como Vicente de Carvalho, Medeiros e Albuquerque e Carlos de Laet, foi de pleno Reconhecimento da poesia de Luís Guimarães Júnior. Seus sonetos Revelam um grande apuro da forma, combinações métricas finas e sutis, eo gosto pelos motivos exóticos que ele Pôde sentir em observar e suas Peregrinações por terras estrangeiras. Romântico de inspiração, mas já dentro da orientação parnasiana, ele foi, no apuro da expressão, um precursor da poesia de Raimundo Correia, Bilac e Alberto de Oliveira.
Obras: Lírio branco, romance (1862); Uma cena contemporânea, teatro (1862); Corimbos, poesia (1866); A família agulha, romance (1870); Noturnos, poesia (1872); Filigranas, ficção (1872); Sonetos e Rimas, poesia (1880); Contos sem pretensão (1872), e várias peças de teatro.


(DADOS EXTRAÍDOS DA PÁGINA DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS)
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