(Trecho do livro “Capoeira das
Éguas” – Autor: José de Anchieta Batista)
Nunca foi deixado no esquecimento
a história da “assombração” que saía vendendo seus produtos, dentro da noite,
quando todos supostamente já dormiam. É bom relembrar essa palhaçada histórica:
Nas madrugadas de duas
sextas-feiras seguidas, daquele julho de 1955, alguém inventou de sair vendendo
ovos aos capoeirenses. Meia-noite em ponto começava a ladainha:
– Olhe os ovos! A dúzia é dois
“mim réis”! – gritava, repetidamente, uma voz grossa e fanhosa.
Descia correndo por uma das
ruelas, balançando um chocalho e arrastando algo como se fossem latas velhas
amarradas umas às outras. Sua demora era somente o tempo de chegar até as
imediações da velha ponte. Desaparecia, então, dentro da noite, sem deixar vestígios.
Dizem que, da primeira vez, saiu
dos fundos da igreja, um local descampado e escuro. Da segunda vez, sua
“aparição” teria iniciado nas proximidades do cemitério, aumentando o alvoroço
sobre coisas do outro mundo. Não demorou muito para que aparecessem as mais
estapafúrdias versões sobre aquela coisa estranha, principalmente por parte dos
que acreditavam em visagem ou assombração.
Todo mundo de portas fechadas a
partir das nove horas, quando o velho gerador de luz piscava duas vezes, antes
de entrar em silêncio absoluto, dez minutos depois. Se não fosse noite de lua,
passava a reinar a completa escuridão. Naqueles dias, ninguém era doido de
ficar na rua até tarde. As mentes mais férteis deram vazão à criatividade, com
histórias detalhadas e assombrosas, dignas de virarem roteiro de filmes de
terror.
A culpa seria das “almas
penadas”. Para essas almas, muitas beatas da igreja dedicaram suas rezas
durante muitos dias. Outros achavam que era o Zuzu, um rapaz que enlouquecera,
em agosto de 1954, por ocasião da morte de Getúlio Vargas. Fazia um ano que, na
força da lua, vagava sem destino por tudo quanto era canto, fazendo discursos
ou repetindo a carta-testamento do finado presidente:
“Mais uma vez, as forças e os
interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim.
Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de
defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não
continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes.
... Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio.
Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para
entrar na História”.
Quando estava atacado, discursava
e repetia a cartatestamento, incansavelmente, pelas ruelas de Capoeira das
Éguas. Zuzu sabia de cor, palavra por palavra. A forma de pronunciá-las era
teatral e chegava a comover quem ouvisse.
Embora alguns tenham tentado
atribuir-lhe a autoria da venda dos ovos dentro da madrugada, isso foi
descartado, porque um maluco varrido não forjaria isso, nem desapareceria
depois de fazer aquela presepada.
Todos buscavam descobrir quem
seria o culpado pela façanha dos ovos. Até a alma da “Santa Velhinha”, falecida
dois anos antes, em 1953, passou também a ser vista como uma possibilidade de
provocar aquele mistério. Os devotos da “bem-aventurada” esbravejavam
revoltados: – Isso vem dos pecados de vocês! Isso é coisa do maligno! A Santa
Velhinha é uma santa! Não vai se ocupar com essas besteiras.
Não admitiam de forma nenhuma
aquele sacrilégio. Ora!
Alguns mais maliciosos desconfiavam de que algum gaiato estava corneando alguém
do lugar e ainda zombava da própria vítima, fazendo propaganda dos próprios
“ovos”.
E o mistério continuou. Foi, então, que entrou em cena o Sargento Neves,
comissário de polícia de Capoeira das Éguas. Sentiu-se na obrigação de
desvendar a palhaçada. Convocou seus dois soldados e aceitou o reforço de um de
seus amigos, o Zé Pirrita, que veio se oferecer voluntariamente.
Na sexta-feira seguinte, ficaram
de tocaia num ponto estratégico, por onde, provavelmente, o malfazejo haveria
de passar. O Zé Pirrita era metido a brabo e demonstrava uma revolta desmedida
contra aquele novo perturbador da ordem local.
Munidos de fuzis, de revólveres,
de cacetes e de uma velha espingarda de carregar pela boca, esconderam-se por
trás de um capão de mato, junto da velha ponte, a fim de surpreenderem o
engraçadinho. Alguém havia jurado que os vira-latas acompanhavam o sujeito até
as imediações da ponte, com seus latidos barulhentos, embora inofensivos. Era
ali que iam esperá-lo, com o firme propósito de moer o sujeito na peia.
Aguardaram-no pacientemente até
quase o romper da aurora. Nada de assombração, lobisomem, ou fosse lá o que
fosse. Voltaram indignados para casa, principalmente o Zé Pirrita que jurava de
todas as formas desvendar aquela coisa esquisita. Contudo, a partir daquela
noite, o malfazejo não mais deu as caras. Desapareceu de uma vez, deixando para
trás, e por muitos anos, uma histórica palhaçada, revestida de grande mistério.
Uns quarenta anos depois, antes
de bater as botas, num dos hospitais de Campina Grande, soube-se da boca do
próprio Zé Pirrita, um dos caçadores do malfazejo, que ele próprio teria sido o
misterioso vendedor de ovos!
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