domingo, 30 de julho de 2017

A ASSOMBRAÇÃO QUE VENDIA OVOS

(Trecho do livro “Capoeira das Éguas” – Autor: José de Anchieta Batista)
Nunca foi deixado no esquecimento a história da “assombração” que saía vendendo seus produtos, dentro da noite, quando todos supostamente já dormiam. É bom relembrar essa palhaçada histórica:
Nas madrugadas de duas sextas-feiras seguidas, daquele julho de 1955, alguém inventou de sair vendendo ovos aos capoeirenses. Meia-noite em ponto começava a ladainha:
– Olhe os ovos! A dúzia é dois “mim réis”! – gritava, repetidamente, uma voz grossa e fanhosa.
Descia correndo por uma das ruelas, balançando um chocalho e arrastando algo como se fossem latas velhas amarradas umas às outras. Sua demora era somente o tempo de chegar até as imediações da velha ponte. Desaparecia, então, dentro da noite, sem deixar vestígios.
Dizem que, da primeira vez, saiu dos fundos da igreja, um local descampado e escuro. Da segunda vez, sua “aparição” teria iniciado nas proximidades do cemitério, aumentando o alvoroço sobre coisas do outro mundo. Não demorou muito para que aparecessem as mais estapafúrdias versões sobre aquela coisa estranha, principalmente por parte dos que acreditavam em visagem ou assombração.
Todo mundo de portas fechadas a partir das nove horas, quando o velho gerador de luz piscava duas vezes, antes de entrar em silêncio absoluto, dez minutos depois. Se não fosse noite de lua, passava a reinar a completa escuridão. Naqueles dias, ninguém era doido de ficar na rua até tarde. As mentes mais férteis deram vazão à criatividade, com histórias detalhadas e assombrosas, dignas de virarem roteiro de filmes de terror.
A culpa seria das “almas penadas”. Para essas almas, muitas beatas da igreja dedicaram suas rezas durante muitos dias. Outros achavam que era o Zuzu, um rapaz que enlouquecera, em agosto de 1954, por ocasião da morte de Getúlio Vargas. Fazia um ano que, na força da lua, vagava sem destino por tudo quanto era canto, fazendo discursos ou repetindo a carta-testamento do finado presidente:
“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. ... Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História”.
Quando estava atacado, discursava e repetia a cartatestamento, incansavelmente, pelas ruelas de Capoeira das Éguas. Zuzu sabia de cor, palavra por palavra. A forma de pronunciá-las era teatral e chegava a comover quem ouvisse.
Embora alguns tenham tentado atribuir-lhe a autoria da venda dos ovos dentro da madrugada, isso foi descartado, porque um maluco varrido não forjaria isso, nem desapareceria depois de fazer aquela presepada.
Todos buscavam descobrir quem seria o culpado pela façanha dos ovos. Até a alma da “Santa Velhinha”, falecida dois anos antes, em 1953, passou também a ser vista como uma possibilidade de provocar aquele mistério. Os devotos da “bem-aventurada” esbravejavam revoltados: – Isso vem dos pecados de vocês! Isso é coisa do maligno! A Santa Velhinha é uma santa! Não vai se ocupar com essas besteiras.
Não admitiam de forma nenhuma aquele sacrilégio. Ora! 
Alguns mais maliciosos desconfiavam de que algum gaiato estava corneando alguém do lugar e ainda zombava da própria vítima, fazendo propaganda dos próprios “ovos”. 
E o mistério continuou. Foi, então, que entrou em cena o Sargento Neves, comissário de polícia de Capoeira das Éguas. Sentiu-se na obrigação de desvendar a palhaçada. Convocou seus dois soldados e aceitou o reforço de um de seus amigos, o Zé Pirrita, que veio se oferecer voluntariamente.

Na sexta-feira seguinte, ficaram de tocaia num ponto estratégico, por onde, provavelmente, o malfazejo haveria de passar. O Zé Pirrita era metido a brabo e demonstrava uma revolta desmedida contra aquele novo perturbador da ordem local.
Munidos de fuzis, de revólveres, de cacetes e de uma velha espingarda de carregar pela boca, esconderam-se por trás de um capão de mato, junto da velha ponte, a fim de surpreenderem o engraçadinho. Alguém havia jurado que os vira-latas acompanhavam o sujeito até as imediações da ponte, com seus latidos barulhentos, embora inofensivos. Era ali que iam esperá-lo, com o firme propósito de moer o sujeito na peia.
Aguardaram-no pacientemente até quase o romper da aurora. Nada de assombração, lobisomem, ou fosse lá o que fosse. Voltaram indignados para casa, principalmente o Zé Pirrita que jurava de todas as formas desvendar aquela coisa esquisita. Contudo, a partir daquela noite, o malfazejo não mais deu as caras. Desapareceu de uma vez, deixando para trás, e por muitos anos, uma histórica palhaçada, revestida de grande mistério.
Uns quarenta anos depois, antes de bater as botas, num dos hospitais de Campina Grande, soube-se da boca do próprio Zé Pirrita, um dos caçadores do malfazejo, que ele próprio teria sido o misterioso vendedor de ovos!


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