(Anchieta)
O
que tem acontecido neste nosso país reforça-me a convicção de que somos
realmente moradores da Bruzundanga. Quem não sabe ou não se lembra o que
significa pertencer àquele país, imaginado por Lima Barreto, deve ler ou reler
“Os Bruzundangas”. Afirmei que o autor, morto em 1922 com 41 anos, teria “imaginado”
um país, mas o que realmente fez foi transferir para o papel um Brasil vivido
por ele e por seus contemporâneos naqueles recém-declarados “Estados Unidos do
Brasil”. Fez isso de forma satírica, mas baseado num ambiente real, em que a
esculhambação já era historicamente dominante. Os desmandos, a pouca-vergonha,
a corrupção, e outros males que estão no DNA brasileiro, já eram praticados sem
o menor pudor. Hoje, passados quase cem anos (o livro foi editado em 1923, ano
seguinte à sua morte), vemos que tais descaramentos continuam de forma bem mais
“modernizada”.
O
livro “Os Bruzundangas” é prefaciado pelo próprio autor, que já insere na
primeira página, uma curiosa citação extraída do Capítulo IV da “Arte de
Furtar’: “Como os maiores ladrões são os
que têm por oficio livrar-nos de outros ladrões".
Esta
foi a frase com a qual Lima Barreto ilustrou e sintetizou a nova elite que passou
a ocupar os postos de mando nos primeiros anos de república. Os novos mandachuvas,
como os tratava, traziam as mesmíssimas mazelas copiadas das práticas utilizadas
no império. Só houve uma passagem de bastão.
Quanto
à obra “Arte de Furtar”, nunca a li. Num passeio pelo Google, tive notícia de
que foi entregue a D. João IV em 1652, mas só um século depois teria tido sua
primeira impressão. Sobre a autoria, uns a atribuem ao Padre Antonio Vieira,
outros ao jesuíta Padre Manuel da Costa. Não pude
colher, entretanto, uma plena certeza de quem teria sido o verdadeiro
autor.
Já
li e reli “Os Bruzundangas”, mas a “Arte de Furtar” só agora entrou em minha
lista de espera. Brevemente percorrerei seus capítulos. A razão de minha
decisão é que, ao consultar o “index” de uma edição histórica do livro, achei
muito interessantes os temas abordados em cada capítulo. São setenta. Os dois
primeiros afirmam, em tom de sarcasmo, que furtar é uma arte, que é uma ciência
e que furtar é muito nobre. E por aí vai, de forma nitidamente crítica e
irônica, citando e descrevendo os ladrões e a roubalheira da época. Adivinhem sobre o que se ocupa o último
capítulo? Imaginaram? Pois bem, o septuagésimo capítulo trata exatamente do
“desengano geral”, isso que continuamos a sofrer em nosso Brasil.
Desculpem-me
dar uma olhada no retrovisor de minha existência.
Naquele
sertão inóspito de minha Paraíba, em meados do Século XX, eu vivia na
Bruzundanga do Lima Barreto e não sabia. Lembro-me de que, na execução dos
programas de emergência, criados pelo governo para ocupar sertanejos famintos e
necessitados, eram explícitas as desumanas tramoias praticadas. Roubavam
descaradamente o pouco que ali chegava em socorro aos retirantes e flagelados
da seca. Naquele cenário de aflição e dor, nunca pude esquecer o mais triste
dos fatos que presenciei: Certo dia, os urubus voavam em círculo, sobre uma
capoeira ressequida e pedregosa. Denunciavam o cadáver putrefato de uma
velhinha que desaparecera de nossas portas.
Morrera, com certeza, de fome e sede. Foi algo que chocou todo mundo.
Nasci
em meio a uma gente realmente humilde, pobre e desprezada, onde a mais
nutriente alimentação era o poder da fé. Meu povo recebia tudo como vontade de
Deus e a Ele agradecia por suas dores e prantos. A seca estava sempre ali massacrando.
Era uma gente pedinte, miserável e ignorante, que não conhecia nem sabia
reivindicar direitos, mas que se dizia “feliz, graças a Deus! ”. E enquanto os
velhos coronéis e raposas políticas de então se autoproclamavam salvadores do
povo, a desgraça de minha gente se perpetuava. Na verdade, eles não queriam que
nada mudasse. Alimentavam-se politicamente
daquela penúria. Eram também abutres.
Olho
o Brasil de hoje. Em todos os recantos, continuamos a respirar a mesma fedentina
provocada pela mesmíssima disenteria moral e ética.
Estamos
em 2017. Os mais recentes fatos, a que todos assistimos, servem para carimbar a
minha certeza de que vivemos numa república onde a pouca-vergonha e o cinismo
continuam a imperar.
Viva
a Bruzundanga!
Nenhum comentário:
Postar um comentário