sábado, 21 de julho de 2018

DOUTOR RIVALDO GUIMARÃES E O “CAUSO” DO REGATÃO[1]

José de Anchieta Batista
Meu saudoso amigo, Dr. Rivaldo Guimarães, que viajou para a outra dimensão em 2012, era meu conterrâneo, nascido na cidade de Cajazeiras, lá no sertão da Paraíba, e foi trazido para o Acre, nos idos de 1948, aos três anos de idade. Antes de entregar-se ao mundo do Direito, militou como jornalista em diversos órgãos da imprensa acreana.
Doutor Rivaldo, como eu o chamava, era um cidadão simples e da melhor qualidade, um sujeito porreta, um cara espirituoso, um apreciador da boa prosa, um admirador do cordel, um apaixonado por sua raiz nordestina e, ao mesmo tempo, um valoroso acreano que se denominava, como eu, um “acreibano” – neologismo que significa a mistura da alma acreana com a paraibana. Sempre que nos encontrávamos, íamos ao fundo do baú, buscar alguma coisa rimada, alguns versos das pelejas de violeiros, ou algum fato pitoresco, descrito em versos, por aqueles nossos sertanejos espirituosos.
Em 1988, nomeado por concurso para o cargo de Juiz de Direito, foi assumir a comarca de Feijó, cidade às margens do Rio Envira, lá no interior do estado do Acre. Sempre foi um cara simples antes de ser juiz e conduziu seu alforje de humildade pela vida afora, mesmo depois que se fez magistrado. Seria naquele município interiorano, um homem da Justiça, sem a imponência e a arrogância de muitos que se sentem acima dos mortais. Conheci vários, em minhas andanças por este mundo de meu Deus, que para externar a autoridade da função ocupada, passavam o tempo como se estivessem vinte e quatro horas com raiva, com vontade de morder alguém, expelindo fumaça pelas ventas, odientos e mal-educados. O Dr. Rivaldo, era exatamente o contrário: um juiz do povo. Compreendia a alma caipira do interiorano. Premido pelo ambiente sui generis daquela gente, adaptava com visão humanista, a figura do juiz, ao modo de ser daquela gente simples. Assim cumpriu seu dever, em algumas comarcas, sem ferir a dignidade do cargo e sem querer postar-se acima de sua condição de ser humano.
Naquela sua simplicidade, o cidadão comum não percorria uma distância muito grande, nem tinha que vencer muitos obstáculos para chegar até o Juiz.
Narro aqui um dos “causos” de sua coleção:
Uma certa tarde, um regatão de nome Pedro Cotia (nome fictício), que residia nos arredores da cidade de Feijó, compareceu ao fórum e, na antessala do Dr. Rivaldo, insistia em ser recebido por ele. A atendente explicou que o “doutor juiz” estava ocupado, estudando os processos das audiências do dia seguinte e que, por isso, não seria possível atendê-lo. O regatão, contudo, argumentava que era muito urgente e que tinha que ser naquela hora. Como o cara tinha fama de ser brabo, a mocinha sentiu-se meio amedrontada. O que diabo aquele cara de voz alta e estridente podia querer com o juiz? A essa altura o chefe de gabinete e um soldado que trabalhava à disposição da comarca, aproximaram-se para contornar a situação. Foi explicado o quanto seria inconveniente interromper a autoridade naquele momento, mas o sujeito fincou pé:
 - Eu só saio daqui depois de falar com o doutor – bradou, sentando-se na cadeira mais próxima que encontrou. Não sou bandido. Sou um homem de bem.
Ali na sala, todos sabiam mais ou menos o motivo por que ele estava ali, mas preferiam fazer de conta que de nada sabiam. Só não estavam entendendo a razão por que ainda não tinha acontecido a desgraça que muita gente previa, nem a razão de estar procurando o juiz. Também evitaram perguntar o que significava aquele catombo na testa, o corte no lábio inferior e aquele jeito de andar com alguma dificuldade. Mesmo assim ele explicou que tudo teria sido ele amansando um burro brabo num daqueles seringais.
- Vocês me conhecem. Sou um cidadão nascido e criado aqui, vivo sofrendo pra cima e pra baixo nesse Envira, sou um cabra respeitado, cumpridor de meus deveres e nunca fui preso.
 Fez uma pausa para beber um copo d’água, e continuou seu discurso de pabulagem, como o cara mais brabo do mundo:
- Não devo a filho da puta nenhum, não cobiço mulher alheia, nunca dei porrada em ninguém sem merecer, nunca levei aborrecimento pra casa e em meus negócios, “comprou, pagou”, ou o cara se arrepende – desabafava em voz alta.
De seu gabinete, o Dr. Rivaldo ouvia tudo. Sabia, entretanto, que seus auxiliares, como em outras oportunidades, saberiam resolver o problema.  Contudo, passados alguns momentos, resolveu chamar pelo interfone seu chefe de gabinete e indagou o que estava acontecendo. Ficou ciente, então, da insistência do regatão em manter uma conversa com ele, informando-lhe também que se tratava de pessoa tida como violenta e que não era conveniente recebê-lo.
- Perceberam se está armado? – perguntou o juiz.
- Está não, doutor. Deu pra ver que não está.
Dr. Rivaldo levantou-se, foi até a porta, abriu-a e chamou o sujeito:
- Amigo, venha cá. Entre e sente-se ali – disse, apontando uma cadeira à frente de sua mesa.
Pedro Cotia apressou-se em cumprir o que mandou a autoridade e foi logo se abrindo:
- Doutor, não quero tomar muito seu tempo, mas é que tô numa situação bem difícil. Sou regatão e vivo fazendo longas viagens pelo Envira. Desta vez passei dois meses fora e quando cheguei, agora meio-dia, encontrei em casa um cabra safado que se mudou pra viver com minha mulher e os dois nem sequer deixaram eu entrar. Veja se isso é possível? Tenho que pelo menos pegar minhas coisas.
O juiz passou a mão no queixo, sem conseguir decifrar aquela contradição: O sujeito tinha fama de muito brabo; era respeitado ali na cidade e também nas brenhas por onde circulava, ao longo do Rio Envira; nos negócios, ninguém lhe dava calote, por medo das consequências; sabia-se de surras que havia aplicado por aí, em razão de não levar desaforo pra casa e, naquele momento, o desaforo estava dentro da própria casa e o cara amarelou diante do “ricardão”. Vá entender? – questionou-se o Dr. Rivaldo, sem contudo, externar essa estranheza, para não incentivar alguma atitude violenta.
Diante da aflição daquele leão abatido, perguntou-lhe:
- E o que o senhor quer que eu faça? 
- Doutor, não vim pedir muita coisa. Já que não tenho filho com ela, quero só pegar meus troços o mais ligeiro possível. Nada mais.
O magistrado redigiu um bilhete para o delegado, entregou ao soldado, e mandou que o indigitado cidadão o acompanhasse.
Pedro Cotia agradeceu, e se despediu para nunca mais ser visto nas redondezas.
Soube-se depois que, na realidade, a confusão tinha sido feroz, o Pedro tinha levado uma surra daquelas, ficando confirmada como verdadeira aquela frase: 
- “Remédio para um brabo é outro mais brabo na corcunda”.


[1] BLOG ALMANACRE (28.08.2010) – REGATÃO: Herói atípico da Amazônia – Autor: Elson Martins:  “... Historicamente, o regatão da Amazônia é o pequeno comerciante que entra nos rios e igarapés com sua pequena embarcação carregada de miudezas, oferecendo esses produtos aos moradores dos rincões da região. Troca – mais que vende – produtos industrializados por espécies valiosas da floresta. ...”


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