sábado, 4 de agosto de 2018

NA CASA DA OUTRA - (por José de Anchieta Batista)

Há muitos anos escolhi a Eletrônica do Severino para proceder os consertos de meus equipamentos domésticos. Severino é um cara simples, sem muita conversa, mas de bom convívio, que sempre demonstrou conhecer muito bem a profissão, e nunca me despertou qualquer desconfiança quanto a sua honestidade.
Na parte da frente do estabelecimento, dona Letícia, sua esposa, cuidava da recepção e gerenciava a pequena loja, onde um empregado atendia os fregueses que ali procuravam mercadorias do ramo da eletrônica. Na parte de trás, separada por uma porta larga, sempre mantida fechada, funcionava a oficina do Severino.
Dona Letícia não trazia uma beleza que chamasse atenção, mas para o Severino, feio, buchudo e meio grosseiro, ela estava bem acima do padrão. No dia a dia, cuidava das anotações, fazia a emissão das notas fiscais, telefonava para os fregueses da casa, controlava as cobranças e era responsável pelo “caixa”. Sempre educada e solícita, ela própria servia cafezinho e água aos clientes, além de alimentar um bom papo, principalmente quando o assunto era futebol. Era uma flamenguista exaltada e sempre aproveitava minha passagem por ali, para zonar com minha cara, diante de qualquer derrota do Vasco. Com certeza, quando a vez da chacota era minha, dava-lhe o troco na mesma moeda. Assim, eu sempre passava pela Eletrônica do Severino para prosear, tomar um cafezinho, futricar com as coisas do Flamengo e também pegar no pé da dona Letícia em razão de suas preferências políticas. Podia-se dizer que havia se estabelecido uma boa amizade.
Um dia cheguei por lá, levando para conserto, um forno micro-ondas. Dona Letícia atendeu-me carrancuda, sem quase responder ao meu bom-dia. Estava visivelmente atormentada por algum a coisa. Matutei sobre o que poderia ser e se partira de mim. Claro que não. Imaginei algum aborrecimento tolo do cotidiano e parti para quebrar aquele gelo:
- Dona Letícia, cadê o Severino? - perguntei-lhe.
- Sei lá! - respondeu-me secamente.
Como eu desconhecia qualquer sacanagem por parte dele, e como era costume meu brincar com ela sobre as ausências do marido, disse-lhe sorrindo:
- Se perturbe não, Dona Letícia, ele foi somente lá na casa da outra mas volta já.
Não havia hora mais inoportuna para eu fazer aquilo. Dona Letícia olhou para mim como se eu fosse seu pior inimigo, como se quisesse me morder, e disparou aos gritos:
- Até o senhor já tá sabendo, seu Anchieta? Aquele cachorro, safado, filho da puta…
Resolvi interferir e me justificar:
- Dona Letícia, queira me perdoar, eu não sei de nada! A senhora acha que se eu soubesse de alguma coisa, que nem imagino o que seja, eu iria afrontar a senhora? Nunca!
- Sabe, sim! Homem não vale nada! Rio Branco inteira já sabe disso! Este safado só prestava pra ser corno! Tem uma mulher séria como eu em casa e vai pra rua arranjar uma quenga qualquer!
Resolvi não mais alimentar qualquer papo. Não adiantava conversar. Dirigi-me para a porta e, enquanto ela ainda falava, entrei no carro, sem deixar o micro-ondas, e sumi pela Chico Mendes, intrigado com o incidente.
A partir de então, dei um tempo sem passar pela Eletrônica.
Uns seis meses depois daquilo, entrei lá para pedir a opinião do Severino sobre uma marca de televisor. Fui atendido por uma morena estonteante, daquelas que não fazem questão de esconder o lado da vulgaridade. Um perigo.
- Bom-dia, moça. Onde está o patrão? – perguntei-lhe.
- Bom-dia, meu amor. Severino saiu para o centro, mas se quiser deixar algum recado, eu sou a esposa dele – falou-me, acentuando sua voz melosa, enquanto se dirigia à mesa do computador, com seu rebolado provocante.
- Não, minha senhora, depois eu venho. Obrigado. – disse-lhe, dirigindo-me à saída.
- Tenha um bom-dia, meu bem, e volte sempre – disse-me com aquele olhar de quem queria me saborear vivo.
Nunca mais retornei ali, nunca mais falei com o Severino e, também, nunca soube do destino da dona Letícia, que tanto me enchia a paciência nas derrotas cruzmaltinas.
Concluo afirmando que, mesmo sendo um apaixonado pela Cruz de Malta, há mais de meio século, eu preferia mil vezes que continuasse dependurado naquela parede, o enorme distintivo do Flamengo, que a nova esposa do Severino substituíra pelo brasão do Vasco.
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