Há
muitos anos escolhi a Eletrônica do Severino para proceder os
consertos de meus equipamentos domésticos. Severino é um cara
simples, sem muita conversa, mas de bom convívio, que sempre
demonstrou conhecer muito bem a profissão, e nunca me despertou
qualquer desconfiança quanto a sua honestidade.
Na
parte da frente do estabelecimento, dona Letícia, sua esposa,
cuidava da recepção e gerenciava a pequena loja, onde um empregado
atendia os fregueses que ali procuravam mercadorias do ramo da
eletrônica. Na parte de trás, separada por uma porta larga, sempre
mantida fechada, funcionava a oficina do Severino.
Dona
Letícia não trazia uma beleza que chamasse atenção, mas para o
Severino, feio, buchudo e meio grosseiro, ela estava bem acima do
padrão. No dia a dia, cuidava das anotações, fazia a emissão das
notas fiscais, telefonava para os fregueses da casa, controlava as
cobranças e era responsável pelo “caixa”. Sempre educada e
solícita, ela própria servia cafezinho e água aos clientes, além
de alimentar um bom papo, principalmente quando o assunto era
futebol. Era uma flamenguista exaltada e sempre aproveitava minha
passagem por ali, para zonar com minha cara, diante de qualquer
derrota do Vasco. Com certeza, quando a vez da chacota era minha,
dava-lhe o troco na mesma moeda. Assim, eu sempre passava pela
Eletrônica do Severino para prosear, tomar um cafezinho, futricar
com as coisas do Flamengo e também pegar no pé da dona Letícia em
razão de suas preferências políticas. Podia-se dizer que havia se
estabelecido uma boa amizade.
Um
dia cheguei por lá, levando para conserto, um forno micro-ondas.
Dona Letícia atendeu-me carrancuda, sem quase responder ao meu
bom-dia. Estava visivelmente atormentada por algum a coisa. Matutei
sobre o que poderia ser e se partira de mim. Claro que não. Imaginei
algum aborrecimento tolo do cotidiano e parti para quebrar aquele
gelo:
-
Dona Letícia, cadê o Severino? - perguntei-lhe.
-
Sei lá! - respondeu-me secamente.
Como
eu desconhecia qualquer sacanagem por parte dele, e como era costume
meu brincar com ela sobre as ausências do marido, disse-lhe
sorrindo:
-
Se perturbe não, Dona Letícia, ele foi somente lá na casa da outra
mas volta já.
Não
havia hora mais inoportuna para eu fazer aquilo. Dona Letícia olhou
para mim como se eu fosse seu pior inimigo, como se quisesse me
morder, e disparou aos gritos:
-
Até o senhor já tá sabendo, seu Anchieta? Aquele cachorro, safado,
filho da puta…
Resolvi
interferir e me justificar:
-
Dona Letícia, queira me perdoar, eu não sei de nada! A senhora acha
que se eu soubesse de alguma coisa, que nem imagino o que seja, eu
iria afrontar a senhora? Nunca!
-
Sabe, sim! Homem não vale nada! Rio Branco inteira já sabe disso!
Este safado só prestava pra ser corno! Tem uma mulher séria como eu
em casa e vai pra rua arranjar uma quenga qualquer!
Resolvi
não mais alimentar qualquer papo. Não adiantava conversar.
Dirigi-me para a porta e, enquanto ela ainda falava, entrei no carro,
sem deixar o micro-ondas, e sumi pela Chico Mendes, intrigado com o
incidente.
A
partir de então, dei um tempo sem passar pela Eletrônica.
Uns
seis meses depois daquilo, entrei lá para pedir a opinião do
Severino sobre uma marca de televisor. Fui atendido por uma morena
estonteante, daquelas que não fazem questão de esconder o lado da
vulgaridade. Um perigo.
-
Bom-dia, moça. Onde está o patrão? – perguntei-lhe.
-
Bom-dia, meu amor. Severino saiu para o centro, mas se quiser deixar
algum recado, eu sou a esposa dele – falou-me, acentuando sua voz
melosa, enquanto se dirigia à mesa do computador, com seu rebolado
provocante.
-
Não, minha senhora, depois eu venho. Obrigado. – disse-lhe,
dirigindo-me à saída.
-
Tenha um bom-dia, meu bem, e volte sempre – disse-me com aquele
olhar de quem queria me saborear vivo.
Nunca
mais retornei ali, nunca mais falei com o Severino e, também, nunca
soube do destino da dona Letícia, que tanto me enchia a paciência
nas derrotas cruzmaltinas.
Concluo
afirmando que, mesmo sendo um apaixonado pela Cruz de Malta, há mais
de meio século, eu preferia mil vezes que continuasse dependurado
naquela parede, o enorme distintivo do Flamengo, que a nova esposa do
Severino substituíra pelo brasão do Vasco.
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