Em
tempo de guerra, a convocação para o serviço militar se sobrepõe
à mera voluntariedade, pois se estabelece, acima de tudo, a
obrigação de defender a Pátria com o sacrifício da própria vida.
Isto é algo milenar na vida castrense. Em tempo de paz, contudo, a
escolha da profissão militar significa bem mais uma aceitação
voluntária daqueles rigorosos preceitos que regem a vida na caserna.
Em nenhum caso, entretanto, seja em momento de guerra, seja em
momento de paz, é dado insurgir-se contra os regulamentos. O
descumprimento do dever, mesmo de forma parcial, possui em algum
lugar dos mandamentos disciplinares, uma dosagem apropriada de amargo
remédio.
O
cotidiano nos quartéis transcorre de forma ímpar, diferente do
mundo civil, pautada na estrita obediência à hierarquia e à
disciplina, princípios basilares em que se fundamenta a vida
militar. Estes são dois pilares imprescindíveis para que seja
possível o sucesso na paz e na guerra. Pelo menos era assim durante
o tempo em que por lá estive. Dizem que mudou muito, mas continuo
com a certeza de que, afastadas as duas vigas mestras, melhor será
fechar os quartéis e contratar vigias, guardas-noturnos e jagunços,
pois a bagunça estará instalada e nada funcionará a contento.
Naquele
ambiente de severa observância às normas, onde é sempre repetido
que “ordem dada deve ser ordem cumprida”, acontece de tudo. Ali,
vamos encontrar permanentes relações humanas bem propícias a dois
comportamentos doentios: o puxa-saquismo e o abuso da autoridade.
Em
vinte e três anos de caserna, juntei uma penca de “causos” que
trago bem guardados num compartimento especial do alforje de minha
vida.
Lembro
que certa vez, no pátio do quartel, um cabo que cuidava da faxina,
aproximou-se do comandante e, com um lenço na mão esquerda, fez sua
apresentação em voz alta e falou:
-
Coronel, uma andorinha indisciplinada fez cocô lá de cima e sujou o
ombro de sua gandola. Peço permissão para limpar.
O
comandante, avessos a bajulações, deu-lhe uma “mijada” e
determinou que ele sumisse dali e fosse cumprir suas obrigações com
o lixo.
Noutra
oportunidade, um sargento foi voluntário para um desgastante
treinamento de sobrevivência na caatinga e justificou o porquê de
ser ele voluntário:
-
Capitão, eu tenho me sentido com excesso de saúde.
Muitos
e muitos fatos de bajulices estão registrados na memória do passado
dos quartéis.
Vale
relembrar um episódio ocorrido no Batalhão Especial de Fronteira,
daqui de Rio Branco: um soldado convidou o comandante da Companhia de
Selva para ser o padrinho de batizado do filho. Dias depois, passou
por minhas mãos uma certidão de nascimento, em que o garoto herdara
o nome completo de seu padrinho, acrescido apenas da palavra Silva.
Em
outro quartel de fronteira, não me lembro precisamente onde, em
plena efervescência do governo militar, quando sobejavam frases de
incentivo ao patriotismo, a filha de um cabo do rancho recebeu, num
ato de puxa-saquismo nacional, o nome de Elvira do Ipiranga.
E
assim proliferam as sagas tragicômicas dos bajuladores.
Enfoquei
aqui “causos” do meio militar, mas ao vir conviver no mundo
civil, encontrei também essa doença alastrada com maior
prodigalidade. É uma moléstia humana.
Mas,
não posso fechar esta crônica sem registrar pelo menos um fato de
abuso de autoridade. Em um quartel nordestino onde eu servia,
estávamos na primeira reunião de subtenentes e sargentos, com o
novo comandante, um sujeito cuja fama de tirano chegou ali bem
primeiro do que ele. Em certo momento daquele primeiro encontro, um
sargento ousou interrompê-lo, pedindo permissão para fazer uma
pergunta. Coitado de meu amigo! Recebeu a maior mijada de sua vida.
Para mim, foi um momento extremamente ridículo. Jamais alguém
poderia supor que aquele miserável babaca pudesse pensar que estava
acima de Deus.
-
Cale a boca, sargento! Não interrompa a fala de seu comandante!
Fique sabendo que quando um comandante fala até o vento para –
bradou ele do alto de seu Olimpo particular.
Perplexos,
escutamos aquela sentença como uma predição de tudo o que
haveríamos de passar em seus dois anos de comando. Um inferno, um
terror.
A
partir daquela primeira reunião, algum espirituoso tascou-lhe o
apelido de “o imbociota”, palavra resultante de sua condição de
“imbecil”,
“boçal” e idiota”, e que foi sobejamente dita e repetida
durante aquele malfadado biênio. Era nossa insignificante vingança.
Finalizo
com um alerta de que estes “causos” não existem como regra
dentro dos quartéis. A rigorosidade dos regulamentos militares podem
até favorecer, mas não são responsáveis pela prática de condutas
abomináveis. Aqueles regulamentos, pela peculiaridade da missão,
não podiam deixar de ser rigorosos, mas neles também estão
previstas regras da boa convivência humana, respaldada no absoluto
respeito. Os exageros são produtos dos “IMBOCIOTAS”.
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