domingo, 14 de outubro de 2018

OS RECRUTAS DE ASSIS BRASIL E O HEROÍSMO DO VEREADOR (José de Anchieta Batista)

Estado do Acre, início da década de  80.
Não sei como as coisas evoluíram para os dias atuais. Naquele tempo, ao ingressar na vida de caserna, o recruta era submetido a um período de rigoroso internato, que durava mais ou menos quarenta e cinco dias. Naquela fase inicial de adaptação, havia uma correria dos diabos, num vai e vem descomunal. Do toque de alvorada, às seis da manhã, ao toque de silêncio, às vinte e duas horas, a vida dos coitados era movida a gritos, sem quase descanso, num ambiente de verdadeiro pandemônio. Tudo aquilo visava ao enquadramento dos jovens aos rígidos regulamentos do quartel. O ajustamento de conduta àquele novo mundo exigia muito e custava caro a cada recruta. Para os superiores, parecia que nada estava correto, mesmo que estivesse perfeito. Havia sempre repetições e mais repetições de tudo que era executado.

O coroamento dessa fase, chamada de Instrução Individual Básica, se dava, aqui na Amazônia, com a participação na famosa Operação Boina. Eram oito dias de treinamentos intensivos na floresta, com prática de operações de guerra, em que se buscava imitar um combate real na selva.

Terminada a fase de adaptação, que significava uma completa imersão daqueles jovens em outra realidade totalmente adversa, havia a grande festa de entrega das boinas verdes, com a presença de autoridades civis e militares e, principalmente, de familiares e amigos. Estavam ali, prontos para enfrentar qualquer inimigo, os novos “Rambos”.

Na fase seguinte, era procedida a distribuição dos efetivos para os pelotões de fronteira, nas cidades de Assis Brasil, Brasileia e Plácido de Castro, permanecendo em Rio Branco, os designados para servir na sede do 4º Batalhão Especial de Fronteira.

Num daqueles anos do início da década de 80, em Assis Brasil, após mais cinco dias de instrução interna, ainda sob regime de confinamento, chegou a sexta-feira em que receberiam um pequeno grito de liberdade.

Por volta das 16h30, os recrutas ouviram severas recomendações quanto ao comportamento na cidade, e foram liberados. Correram para o alojamento, puseram seus uniformes de passeio, e desceram, quase num único grupo, a ladeira que liga o quartel à Assis Brasil.

Muitos recrutas eram de outras localidades e não conheciam nada por ali. Estavam ansiosos por manter novo contato com o mundo que haviam deixado do lado de fora da caserna, ver as garotas, tomar umas lapadinhas de cachaça, comer algo diferente das gororobas do rancho.

Foi praticamente uma invasão a Assis Brasil. Mais parecia uma faminta vara de queixadas rompendo a selva. Poucos escolheram a pracinha para passar aqueles momentos. A maioria já tinha como destino certo os poucos botecos do centro. Não podiam perder tempo. A ordem era se recolherem ao quartel até as 21h00, no toque do pernoite.

Como era de se esperar, por volta das dezenove horas, surgiu um arranca-rabo entre um grupo de recrutas e alguns rapazes da cidade, que bebiam no salão de uma pensão. O vereador Zé Louzeiro - nome fictício - que estava presente, tentou apaziguar a recrutada, mas a coisa ficou feia para seu lado. Preferiu, então, dar um jeito de sumir na escuridão do fundo do imenso quintal, indo se esconder debaixo do poleiro das galinhas. Ali aguardou silencioso por quase meia hora, até que tudo voltasse ao normal. De lá, apenas escutava a barulheira e observava o que era possível, na espera de que fosse seguro retornar. Os rapazes da cidade, em desvantagem, resolveram dar o fora, mas o quebra-quebra continuou.

De repente, algum dos moradores teve a ideia de gritar bem alto: - “lá vem a patrulha do quartel!”.

Pareceu uma voz de comando determinando que a tropa debandasse. Os recrutas evitaram a estrada e enfrentaram a subida íngreme que dava acesso às proximidades do quartel. Deles, não ficou ninguém. Escafederam-se até mesmo os que estavam na pracinha.

O vereador, quando sentiu que as coisas estavam normalizadas, voltou ao salão, ainda vazio e com algumas cadeiras e mesas quebradas. Foi até o fogão, retirou um tira-gosto da panela, encheu um copo de pinga e marchou garboso até a beira da calçada, onde um grupo de muitas pessoas, no meio da rua, se ocupava em comentar o ocorrido. 
No ombro esquerdo da camisa, Zé Louzeiro trazia algumas manchas de sangue, provocadas por arame farpado. Eram seus “ferimentos 
Todo posudo, as vestes sujas de titica de galinha, o vereador ergueu o copo, tomou um respeitável gole de cachaça, saboreou o pé de galinha que trazia na outra mão, pediu silêncio a todos, e bradou com ares de grande herói:
- Senhoras e senhores de Assis Brasil, como vocês viram, eu botei eles pra correr e se voltarem eu boto de novo! Tão pensando o quê? Que aqui não tem macho, é? Meu dever é defender vocês! Isso, acabei de fazer! E tenho dito!- discursou o vereador, ingerindo o restante da pinga e retornando ao interior da pensão, sob palmas e gargalhadas dos moradores que ali estavam.
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