sábado, 18 de julho de 2015

VOCÊ SABE COM QUEM ESTÁ FALANDO?

(*) José de Anchieta Batista
Em novembro de 2012, faleceu meu saudoso e amado pai, aos 94 anos. Guardava consigo o enorme orgulho de haver prestado serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial. Ingressou nas fileiras do Exército Brasileiro em 1942, no 15º Regimento de Infantaria (15 RI), em João Pessoa, permanecendo na caserna até quase o final da guerra, quando se ocupava em vigiar as praias de Areia Branca, no Rio Grande do Norte. Ali, após longa expectativa de embarque para a Itália, foi licenciado nos primeiros meses de 1945, quando já se prenunciava o final do grande conflito. Retornou, então, à Paraíba, sua terra natal, levando a tiracolo dona América, minha mãe, com quem se casara reservadamente, pois os regulamentos militares vedavam às praças esse direito.
Histórias e mais histórias ficaram gravadas no imaginário livro da honrada vida de Seu Batista, como uma epopeia que sempre era lida e relida pela vida afora. Nada foi apagado de sua invejável memória. E tanto o marcou aquele período de caserna que, mesmo depois dos setenta anos, desfilava nas paradas de Sete de Setembro, junto com outros velhinhos contemporâneos do tempo da guerra, formando um grupamento de honra, a convite do comandante do 31º Batalhão de Infantaria Motorizado, em Campina Grande. Marchava garboso, cheio de pose, peito estufado, cabeça erguida, mãos espalmadas, esforçando-se por harmonizar seus passos com as batidas do tambor.  Conservara dentro de sua alma, o espírito vigoroso do jovem soldado. Sobre a cabeça, uma boina verde, com distintivo da Força Expedicionária Brasileira e, no peito, algumas medalhas honoríficas que ostentava orgulhosamente.
Dentre os muitos ensinamentos, lembro-me de algo que ele sempre repetia:
- “Grito não é sinal de autoridade, meu filho, e a verdadeira valentia mora na mansidão”.  
Quando lhe contavam que algum imbecil utilizou-se daquela babaquice “você sabe com quem está falando?”, ele voltava a relatar, com detalhes, um fato ocorrido no tempo em que servia no quartel de João Pessoa, lá no bairro de Cruz das Armas. O personagem principal era um tenente R/2, detentor de uma boçalidade indescritível, oriundo do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR) do Recife.
Vamos reprisar o caso.
Naquela época, os militares, independentemente de graduação ou patente, não possuíam automóveis particulares. Assim, os que não vinham para o quartel a pé, faziam-no utilizando os bondes, que iam e vinham do centro da cidade para os bairros principais, quase sempre lotados.
Numa dessas viagens, o protagonista do que aqui narramos, um dos oficiais mais metidos a caxias do 15 RI, ocupava lugar nas  primeiras fileiras  de assentos do bonde. Todos ali o observavam com antipatia porque, assim que subiu no bonde, encenou o seu primeiro teatrinho deprimente, determinando, em alta voz,  que um soldado, ocupante do assento, fosse para a traseira do transporte e lhe cedesse o lugar. 
- Soldado! Cumpra o regulamento militar! Dê esta sua cadeira ao seu superior e se desloque para os fundos!
O recruta levantou-se tremendo, perfilou-se, fez continência e, apressadamente, obedeceu a ordem recebida, enquanto o motorneiro dava sequência à viagem.
 Passado aquele incidente, subiu no bonde, em uma das paradas seguintes,  um senhor  idoso, franzino, trajando roupa de cor azul, tipo safári, que foi buscar assento nas últimas fileiras. Coitado do pobre senhor! Ao passar pela figura do “dono do mundo”, pisou, de forma involuntária, sobre a bota impecavelmente lustrada do imponente oficial, sujando-a de terra. Não se podia esperar outra reação:
- O senhor preste atenção por onde passa! Olhe onde pisa!  Sujou a minha bota, seu velho inconveniente! O senhor sabe o trabalho que dá e o tempo que eu gasto para deixar meus calçados brilhando assim? – rugiu o prepotente oficial.
- Tenente, queira me desculpar! Não foi porque quis! – respondeu humildemente o cidadão.
- Claro que sei que foi por sua demência de velho! A partir de certa idade, as pessoas deviam ficar em casa! - bradou o tenente, sentindo-se o mais importante dos seres da criação, enquanto todos se entreolhavam enojados.
Quando o bonde fez parada na frente do quartel, e os passageiros se preparavam para descer, o senhorzinho de azul levantou-se e falou pausadamente, num tom de voz possível de ser ouvido por todos:
- Senhores! O oficial que, há pouquinho, humilhou este velho cidadão, fica considerado preso, por graves transgressões disciplinares aqui cometidas! Siga-me, tenente! – declarou, enquanto exibia, numa das mãos, sua carteira de identidade militar.
O distinto velhinho, à paisana, era um coronel  pertencente ao Serviço Geográfico do Exército, sediado no Rio de Janeiro, que chegara a João Pessoa no dia anterior,  e  que, a convite do comandante, seu amigo pessoal, hospedara-se no alojamento do Estado Maior da corporação.
(*) Escritor, poeta... e não sei mais o quê.

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