(*) José de
Anchieta Batista
Em novembro de 2012, faleceu meu saudoso
e amado pai, aos 94 anos. Guardava consigo o enorme orgulho de haver prestado
serviço militar durante a Segunda Guerra Mundial. Ingressou nas fileiras do
Exército Brasileiro em 1942, no 15º Regimento de Infantaria (15 RI), em João
Pessoa, permanecendo na caserna até quase o final da guerra, quando se ocupava
em vigiar as praias de Areia Branca, no Rio Grande do Norte. Ali, após longa
expectativa de embarque para a Itália, foi licenciado nos primeiros meses de
1945, quando já se prenunciava o final do grande conflito. Retornou, então, à
Paraíba, sua terra natal, levando a tiracolo dona América, minha mãe, com quem
se casara reservadamente, pois os regulamentos militares vedavam às praças esse
direito.
Histórias e mais histórias ficaram
gravadas no imaginário livro da honrada vida de Seu Batista, como uma epopeia
que sempre era lida e relida pela vida afora. Nada foi apagado de sua invejável
memória. E tanto o marcou aquele período de caserna que, mesmo depois dos
setenta anos, desfilava nas paradas de Sete de Setembro, junto com outros velhinhos
contemporâneos do tempo da guerra, formando um grupamento de honra, a convite
do comandante do 31º Batalhão de Infantaria Motorizado, em Campina Grande.
Marchava garboso, cheio de pose, peito estufado, cabeça erguida, mãos
espalmadas, esforçando-se por harmonizar seus passos com as batidas do tambor. Conservara dentro de sua alma, o espírito vigoroso
do jovem soldado. Sobre a cabeça, uma boina verde, com distintivo da Força
Expedicionária Brasileira e, no peito, algumas medalhas honoríficas que
ostentava orgulhosamente.
Dentre os muitos ensinamentos, lembro-me
de algo que ele sempre repetia:
- “Grito não é sinal de autoridade, meu
filho, e a verdadeira valentia mora na mansidão”.
Quando lhe contavam que algum imbecil utilizou-se
daquela babaquice “você sabe com quem está falando?”, ele voltava a relatar,
com detalhes, um fato ocorrido no tempo em que servia no quartel de João Pessoa,
lá no bairro de Cruz das Armas. O personagem principal era um tenente R/2,
detentor de uma boçalidade indescritível, oriundo do Centro de Preparação de
Oficiais da Reserva (CPOR) do Recife.
Vamos reprisar o caso.
Naquela época, os militares,
independentemente de graduação ou patente, não possuíam automóveis particulares.
Assim, os que não vinham para o quartel a pé, faziam-no utilizando os bondes, que
iam e vinham do centro da cidade para os bairros principais, quase sempre
lotados.
Numa dessas viagens, o protagonista do
que aqui narramos, um dos oficiais mais metidos a caxias do 15 RI, ocupava lugar
nas primeiras fileiras de assentos do bonde. Todos ali o observavam
com antipatia porque, assim que subiu no bonde, encenou o seu primeiro
teatrinho deprimente, determinando, em alta voz, que um soldado, ocupante do assento, fosse
para a traseira do transporte e lhe cedesse o lugar.
- Soldado! Cumpra o regulamento militar!
Dê esta sua cadeira ao seu superior e se desloque para os fundos!
O recruta levantou-se tremendo, perfilou-se,
fez continência e, apressadamente, obedeceu a ordem recebida, enquanto o motorneiro
dava sequência à viagem.
Passado aquele incidente, subiu no bonde, em
uma das paradas seguintes, um senhor idoso, franzino, trajando roupa de cor azul, tipo
safári, que foi buscar assento nas últimas fileiras. Coitado do pobre senhor! Ao
passar pela figura do “dono do mundo”, pisou, de forma involuntária, sobre a
bota impecavelmente lustrada do imponente oficial, sujando-a de terra. Não se podia
esperar outra reação:
- O senhor preste atenção por onde passa!
Olhe onde pisa! Sujou a minha bota, seu
velho inconveniente! O senhor sabe o trabalho que dá e o tempo que eu gasto para
deixar meus calçados brilhando assim? – rugiu o prepotente oficial.
- Tenente, queira me desculpar! Não foi
porque quis! – respondeu humildemente o cidadão.
- Claro que sei que foi por sua demência
de velho! A partir de certa idade, as pessoas deviam ficar em casa! - bradou o tenente,
sentindo-se o mais importante dos seres da criação, enquanto todos se
entreolhavam enojados.
Quando o bonde fez parada na frente do
quartel, e os passageiros se preparavam para descer, o senhorzinho de azul levantou-se
e falou pausadamente, num tom de voz possível de ser ouvido por todos:
- Senhores! O oficial que, há pouquinho,
humilhou este velho cidadão, fica considerado preso, por graves transgressões
disciplinares aqui cometidas! Siga-me, tenente! – declarou, enquanto exibia, numa
das mãos, sua carteira de identidade militar.
O distinto velhinho, à paisana, era um
coronel pertencente ao Serviço
Geográfico do Exército, sediado no Rio de Janeiro, que chegara a João Pessoa no
dia anterior, e que, a convite do comandante, seu amigo
pessoal, hospedara-se no alojamento do Estado Maior da corporação.
(*) Escritor, poeta... e não sei mais o quê.
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