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José de Anchieta Batista
Quando menino, num lugarejo bem
atrasado lá do interior da Paraíba, assisti a uma cena que me ficou gravada
para sempre. O chefete político local, analfabeto, ignorante, um cavalo
batizado, ainda não liberto das regras do carrancismo, espancava com um
rebenque, no meio da rua, não me recordo mais por qual motivo, seu filho de
mais ou menos 11 anos. Meu pai interveio, juntamente com dois soldados e, por
pouco, a coisa não descambou para um desfecho na base do trabuco. Ao final, imobilizaram-no,
apreenderam o açoite e um revólver, e depois o conduziram preso, devidamente
amarrado, à cidade de Patos. Um processo criminal instaurado naquela Comarca, nunca
deu em nada e, como castigo, o cabo Batista, mais uma vez, foi transferido para
outro pé de serra.
Lembrar este episódio não tem o
propósito de ressaltar qualquer heroísmo de meu pai, mas tão somente pôr em
foco a bárbara agressão sofrida por aquela criança, servindo o fato de introito
às considerações que aqui pretendo fazer.
Graças a Deus, eu e meus irmãos
nascemos num ambiente pobre, mas de muita compreensão e muito amor. Nunca vivemos
os exageros sofridos por alguns coleguinhas daquela época.
Quem passar os olhos por esta crônica,
com certeza há de querer me perguntar se em nossa casa não havia a utilização
da palmada, do chinelo, do cinturão ou do cipó. Claro que havia. Eram nossos manuais de boas maneiras. No
Nordeste, principalmente nas brenhas sertanejas, onde nasci e endureci o
pescoço, era muito comum a prática de uma forma mais rude de disciplinamento das
crianças. “Escreveu, não leu, o pau comeu!”. Era o mandamento mais em uso por
lá. E ali, a figura do pai representava sempre a última instância para aplicação
do cinturão ou do cipó de goiabeira. Quando a mãe gritava “vou contar pra seu
pai!”, era como se estivesse condenando o moleque a um tribunal de
exceção. Bastava esse alerta para que
todos ficassem quietinhos e a disciplina doméstica fosse restabelecida.
Mais de meio século se passou e atualmente
convivemos com a “Lei da Palmada”.
Tudo ficou proibido nas entrelinhas dessa lei, até mesmo dar um grito mais
forte ou usar de uma postura mais severa. Pode isso ser interpretado como uma
atitude de escárnio ou de humilhação contra a criança. Quem quiser que discorde de mim, mas também é
um direito meu não concordar com esses extremos. Uma coisa é o espancamento.
Outra coisa é alguma ação paterna, evidentemente sem exageros, que sinalize as
boas maneiras e até mesmo os perigos a que esteja exposta a criança.
Não, meus senhores! Não estou fazendo
apologia a maus tratos contra a figura sagrada da criança. E quero deixar claro
que não tenho a menor dúvida de que a fonte maior da evolução dos homens é, e
será sempre, o amor. É sob um sentimento de verdadeiro amor que melhor criamos
nossos filhos. E é, com certeza, uma grande
ausência de amor deixar que as crianças se criem como batatas lá na beira do
rio, como se diz lá na Paraíba. Sabemos
que o garoto impulsivo e travesso, que no convívio da família não reconhece
qualquer autoridade, também é um rebelde lá fora. Foge de ir à escola, não dá
bolas para as tarefas, suja as paredes do colégio, quebra as lâmpadas, briga
com os colegas todos os dias, desrespeita os professores etc., e por aí vai.
Amigos, qual a atitude menos danosa: Deixar
que a criança teime em colocar o dedinho na tomada, ou dar-lhe uma palmada na
bunda, quando insistir em fazê-lo?
Sei que o assunto é muito sério, complexo
e que também enseja muita celeuma. Desejo, porém, concluir esta pequena abordagem,
relembrando um fato bem interessante, ocorrido no início dos anos 90, na Escola
Técnica de Comércio Acreana – ETCA, onde lecionei por muitos anos..
Certa manhã de sábado, em movimentada
reunião, com as presenças dos pais dos alunos e de nós professores, cumpriu-se uma
pauta que teve por finalidade a busca da melhoria dos resultados escolares e,
ainda, levar ao conhecimento de todos, os atos recorrentes de indisciplina
naquela Escola.
No salão que servia de auditório, todos
se revezavam no uso da palavra, num ambiente de discussões acaloradas, reclamações,
justificativas, apelos e sugestões as mais diversas.
Em meio a tudo aquilo, sobressaía uma professora que
concluíra recentemente um curso de mestrado na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Nossa colega se esmebrava em mostrar que trouxera respostas e soluções
para tudo. Tinha, na ponta da língua, citações de educadores famosos, principalmente
Paulo Freire, Montessori e Piaget (pronuncia-se “PIAGÊ”). Interferia a todo
momento, sempre enumerando as propostas milagrosas do Dr. Piaget, de quem se
tornara uma devota juramentada: “Piaget diz...”, “Piaget recomenda ...”, “Piaget
ensina...”, “Piaget isso”, “Piaget aquilo”. Com todo o respeito que merece o grande mestre
Jean Piaget, mas as intervenções da professora semearam no ambiente uma enorme
antipatia por seu nome, sobremodo porque ali, pouquíssimas pessoas sabiam algo
a respeito dele.
O Macário, um velho conhecido meu, sentado junto à
janela, com aquele seu jeitão de observador e crítico, assistia pacientemente a
tudo, sem pronunciar uma palavra sequer. Finalmente, como se avizinhava a hora de se
dirigir ao aeroporto, aproveitou o momento mais oportuno, levantou-se e, após explicar
em voz alta sua necessidade de ausentar-se, formulou uma pergunta à diretora:
- Professora, como estão meus filhos Macário Júnior e
Dolores? Gostaria de saber, antes de minha viagem.
- Dr. Macário, eles dois são hoje exemplos de
excelentes alunos. Depois de tantas queixas que fizemos ao senhor, finalmente mudaram
da água para o vinho. Não faltam às aulas, tornaram-se aplicados, estudiosos, respeitadores,
obtêm as melhores notas, e hoje têm comportamentos irrepreensíveis. Se o caro
Doutor ainda dispuser de algum tempinho, seria ótimo que nos falasse sobre esta
notável transformação.
Macário dirigiu-se à tagarela mestra piagetiana,
sentada ao lado da diretora, e perguntou:
- Professora, como é mesmo o nome desse grande mestre
que a Senhora citou tantas vezes?
- Jean William Fritz Piaget – pronunciou pausadamente
a professora, separando com força cada palavra, mas com destaque para “PI-A-GÊ”.
Macário temperou a garganta e, com sua apimentada e
costumeira sinceridade, arrematou:
- Amigos, em meu obscuro mundo da Pedagogia, lancei
mão de uma didática diferente: Em vez dos
métodos desse tão consagrado “P-I-A-GÊ”,
eu coloquei em prática minha “PEIA-JÁ!”,
sob as orientações do famoso psicólogo doutor Cipó de Goiabeira.
Concluída sua
espirituosa e breve intervenção, o Macário esboçou um misterioso sorriso,
mencionou novamente sua pressa em sair, fez um gesto de reverência a todos e, com
passos lentos, cruzou a porta e sumiu pelo corredor, deixando para trás uma
nova discussão em pauta.
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