sábado, 24 de outubro de 2015

GAIFO - GALFO - GARFO

Houve tempos em que os pais interferiam diretamente na escolha de quem se casaria com seus filhos. Foi com essa interveniência que o jovem Severino Mauá, recém-saído da Faculdade de Direito do Recife, uniu-se em matrimônio com Florentina, filha única de um velho compadre de seu pai. Tinha sido sua primeira namorada, lá naqueles grotões, onde o vento fazia a curva e encostava o lixo. Não se contrapôs ao pai, mesmo com a relativa independência que lhe era proporcionada pelo título de doutor. É que a vontade do genitor vinha ao encontro de antigos sentimentos do jovem advogado. Mesmo após oito anos estudando no Recife, conservara bem viva sua antiga paixão, que de tão grande e imorredoura, nem as formosas e cultas moças da cidade grande tinham conseguido apagar. Diante disso, obedeceu, sem resistência, à bem-vinda determinação paterna e encerrou um namoro firme com uma professorinha lá de Olinda, para casar-se com Florentina.
Filha de fazendeiro, moça rica, prendada, bonita e viçosa, Florentina nunca tivera qualquer fascínio pelos estudos, nem os seus pais incentivaram-na neste particular. Era semianalfabeta. Cursara apenas o segundo ano primário, o que lhe proporcionava assinar o nome e ler algum texto, sem muita desenvoltura. O pai sempre repetia que mulher não carecia de ser letrada. Aliás, por ali, este pensamento era muito presente. Historicamente, quase todas aquelas moças interioranas, lá dos confins do sertão, estavam naturalmente condenadas a essa condição. Era bastante saber cozinhar e lidar com as coisas domésticas. Assim, já nasciam predestinadas a cumprir, de forma submissa, os papéis de fêmeas e de zeladoras do lar, dos maridos e dos filhos. Isso era tudo, e pronto.
Moldada daquela forma, era Florentina precisamente o oposto do doutor Mauá, um rapaz erudito e, acima de tudo, um zeloso no trato com nosso idioma, o que fazia com esmerada correção. Daí sua luta constante para minorar as aberrações do linguajar de sua companheira. Já conseguira, por exemplo, que pronunciasse corretamente o próprio nome. Já não se apresentava mais a ninguém como Fu-lo-rin-ti-na.
O doutor Mauá tinha exagerada paciência para com sua mulher, mas era um verdadeiro tormento para o causídico ter de comparecer em alguma reunião social acompanhado da consorte. Quanto à etiqueta, conseguira sucesso acima do esperado. Mas no falar... continuava um desastre. Até já suplicara que, em determinadas ocasiões, abrisse a boca o mínimo possível. De preferência, apenas movimentasse a cabeça para confirmar ou negar alguma coisa. Mas Florentina, muito senhora de si, movida pela irreverência que lhe era peculiar, pouco se lixava para aquelas recomendações. Que se danasse o mundo.
Certo dia, durante um jantar oferecido pelo prefeito à nata política do lugar, esqueceram de colocar talheres justamente onde foi se sentar a nossa amiga. Florentina olhou para um lado, olhou para o outro, e se socorreu do doutor:
- Mauá, mi arranja aí um gaifo!
O marido, entre irritado e envergonhado, passou os olhos pelos presentes e sussurrou-lhe ao ouvido:
- Florentina, o nome não é gaifo! O nome é ...
A mulher não o deixou concluir. Faria ela mesma a correção. E alteando a voz:
- Dixe gaifo pruquê quiz! Tô cansada de sabê qui o nome é galfo!
E acrescentou:
- GÊ - A - LÊ - GAL - FÊ - Ó - FÓ!
- GAL-FO!
Os convivas entreolharam-se. O doutor Mauá, vermelho como um tomate, entregou-lhe o utensílio, perdeu completamente o apetite, enquanto Florentina, orgulhosamente, punha seu garfo a trabalhar.

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