Houve tempos em que
os pais interferiam diretamente na escolha de quem se casaria com seus filhos.
Foi com essa interveniência que o jovem Severino Mauá, recém-saído da Faculdade
de Direito do Recife, uniu-se em matrimônio com Florentina, filha única de um
velho compadre de seu pai. Tinha sido sua primeira namorada, lá naqueles grotões,
onde o vento fazia a curva e encostava o lixo. Não se contrapôs ao pai, mesmo
com a relativa independência que lhe era proporcionada pelo título de doutor. É
que a vontade do genitor vinha ao encontro de antigos sentimentos do jovem
advogado. Mesmo após oito anos estudando no Recife, conservara bem viva sua antiga
paixão, que de tão grande e imorredoura, nem as formosas e cultas moças da
cidade grande tinham conseguido apagar. Diante disso, obedeceu, sem resistência,
à bem-vinda determinação paterna e encerrou um namoro firme com uma professorinha
lá de Olinda, para casar-se com Florentina.
Filha de fazendeiro, moça
rica, prendada, bonita e viçosa, Florentina nunca tivera qualquer fascínio
pelos estudos, nem os seus pais incentivaram-na neste particular. Era
semianalfabeta. Cursara apenas o segundo ano primário, o que lhe proporcionava
assinar o nome e ler algum texto, sem muita desenvoltura. O pai sempre repetia
que mulher não carecia de ser letrada. Aliás, por ali, este pensamento era muito
presente. Historicamente, quase todas aquelas moças interioranas, lá dos
confins do sertão, estavam naturalmente condenadas a essa condição. Era
bastante saber cozinhar e lidar com as coisas domésticas. Assim, já nasciam
predestinadas a cumprir, de forma submissa, os papéis de fêmeas e de zeladoras
do lar, dos maridos e dos filhos. Isso era tudo, e pronto.
Moldada daquela
forma, era Florentina precisamente o oposto do doutor Mauá, um rapaz erudito e,
acima de tudo, um zeloso no trato com nosso idioma, o que fazia com esmerada
correção. Daí sua luta constante para minorar as aberrações do linguajar de sua
companheira. Já conseguira, por exemplo, que pronunciasse corretamente o
próprio nome. Já não se apresentava mais a ninguém como Fu-lo-rin-ti-na.
O doutor Mauá tinha
exagerada paciência para com sua mulher, mas era um verdadeiro tormento para o
causídico ter de comparecer em alguma reunião social acompanhado da consorte.
Quanto à etiqueta, conseguira sucesso acima do esperado. Mas no falar... continuava
um desastre. Até já suplicara que, em determinadas ocasiões, abrisse a boca o
mínimo possível. De preferência, apenas movimentasse a cabeça para confirmar ou
negar alguma coisa. Mas Florentina, muito senhora de si, movida pela irreverência
que lhe era peculiar, pouco se lixava para aquelas recomendações. Que se
danasse o mundo.
Certo dia, durante um
jantar oferecido pelo prefeito à nata política do lugar, esqueceram de colocar
talheres justamente onde foi se sentar a nossa amiga. Florentina olhou para um
lado, olhou para o outro, e se socorreu do doutor:
- Mauá, mi arranja aí
um gaifo!
O marido, entre
irritado e envergonhado, passou os olhos pelos presentes e sussurrou-lhe ao
ouvido:
- Florentina, o nome
não é gaifo! O nome é ...
A mulher não o deixou
concluir. Faria ela mesma a correção. E alteando a voz:
- Dixe gaifo pruquê
quiz! Tô cansada de sabê qui o nome é galfo!
E acrescentou:
- GÊ - A - LÊ - GAL -
FÊ - Ó - FÓ!
- GAL-FO!
Os convivas
entreolharam-se. O doutor Mauá, vermelho como um tomate, entregou-lhe o
utensílio, perdeu completamente o apetite, enquanto Florentina, orgulhosamente,
punha seu garfo a trabalhar.
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