(Anchieta)
Durante alguns anos, fui
seminarista católico da ordem secular.
Naquele ambiente de radical
disciplina, éramos condicionados a uma permanente dicotomia entre Deus e o
Diabo. Um gesto, uma palavra ou um pensamento, por mais insignificante que
fosse, somava pontos para os fulgores do céu ou para as labaredas do inferno. Assim,
eram vinte e quatro horas diárias respirando, até mesmo nos sonhos e pesadelos,
bem-aventuranças e pecados.
Em tenra idade, minha inocente
alma infantil acreditava piamente em tudo que me era dito. Mas o tempo foi
passando e algumas perguntas sem respostas convincentes, frutos do despertar da
razão, começaram a inquietar-me. E quando me tornei adolescente, mergulhei numa
verdadeira confusão espiritual. Parecia ecoar dentro de mim um grito: - não me
enrolem!
Certo dia, através da tela de
palhinhas do confessionário, o velho padre Fernando, deveras irado contra o que
ele chamou de pecado contra o Espírito Santo, alertou-me de que, se naquele
momento eu tivesse morrido sem arrependimento, estaria com certeza no fogo do
inferno. Aquelas palavras causaram-me um sentimento horrível de candidato a
churrasco eterno e me fustigaram por longo tempo.
Depois de muitos conflitos
interiores, sobremodo a respeito dos dogmas de fé, saí do seminário deveras
confuso e quase um ateu. Segui então pela vida afora na certeza de que, na luta
entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno, entre Deus e o Diabo, cada
religião possui sua verdade. Uma verdade que sempre é mentirosa, mas que para
seus fiéis, é sempre a verdade mais verdadeira do universo. Ai de quem pensar
diferente! Cada uma delas confere a seu Deus particular, de forma
inquestionável e inexorável, todo o poder, toda a perfeição, toda a sabedoria,
toda a bondade e, também, toda a maldade possível.
Procurei construir, sem medo, as
minhas concepções de Deus. Busquei senti-Lo como fonte de verdadeiro e infinito
amor. Abominei para todo o sempre, aquele Deus impiedoso e terrível, que no
contexto geral da existência, é sempre autor ou inspirador de muita crueldade e
pequenez. O Deus que em mim restou
concebido está bem acima de tudo isso.
Quanto ao Diabo, também mudei o
seu conceito. Já não o responsabilizo pela prática daquilo que eu mesmo decido
fazer. Como é bom ter alguém para quem transferir o malfeito... Não é mesmo?
Hoje, ocorreu-me recordar aqui um
fato acontecido muitos anos após haver eu deixado o Seminário Arquidiocesano da
Paraíba. Em 1978, lá em João Pessoa, quando já me fizera avesso a qualquer
assunto religioso, um pastor da igreja protestante frequentada por esposa e
filhas resolveu visitar-me, devidamente acompanhado da esposa, com a nítida
intenção de "salvar-me". Pelo menos senti essa pretensão logo nos
primeiros momentos de nossa conversa. Estava ele presunçosamente disposto a
tirar-me da perdição, expurgando de uma vez por todas, os mistérios e os segredos
das coisas divinas. Realmente ele se dava ares de um homem de Deus, de um
sábio, de um santo, de um profeta, enquanto eu – coitado de mim! – não passava
de um reles pecador, sórdido e ignorante, um acólito de satanás.
Sempre fui um mau ouvinte incorrigível,
mas me contive a todo custo, e o deixei falar por um longo tempo, sem
interrompê-lo. Depois de alguns momentos, não mais suportei minha mudez e fui
soltando a língua para também externar minhas contraposições. Perdemos, assim,
quase toda uma manhã confabulando, num longo e inócuo debate.
Já próximo do meio-dia, entramos
no que se pode chamar de capítulo final. Esposa e filhas almoçariam em evento
da igreja, enquanto eu estaria com amigos em alguma barraquinha profana da
orla. Consultei o relógio, deixando transparecer que queria concluir o papo.
Foi aí que me inspirei no fato de sua esposa estar passando pelos últimos dias
de gravidez. O parto estava previsto para a semana seguinte. Lembrando-me
disso, investi:
- Pastor, o senhor acabou de me dizer
que na bíblia inexiste qualquer erro ou equívoco. Isso é mesmo uma verdade
irrefutável?
- Claro! É a palavra de Deus!
Seria atribuir erros a Deus! Deus não erra!
Embora eu já soubesse que a
criança viria ao mundo por meio de uma operação cesariana, emendei,
maliciosamente:
- O parto de sua esposa será feito
com os procedimentos ditos normais?
- Não. Vamos fazer uma cesariana.
- Como, pastor? Não pode! Uma
cesariana se conflita com o que diz a Bíblia.
- Como assim? Não estamos fazendo
nada que vá de encontro aos ditames de Deus - justificou o arrebanhador de
almas.
- Claro que está! Ou o parto é
normal ou a operação terá de ser feita sem anestesia! -
disse-lhe eu, com exagero proposital.
Dona Lúcia, a esposa do pastor,
uma jovem senhora muito bonita, brincalhona, descontraída e sem frescuras,
desprovida daqueles hipócritas padrões de santidade, levou o assunto na
galhofa. Depois de gostosa gargalhada, mandou que eu mesmo fosse parir daquela
forma, ou seja, sem anestesia. E como colega de sala de aula na Universidade
Federal da Paraíba, usou da natural liberdade de mandar-me à merda. Sorrimos
juntos.
O pastor, entretanto, ficou
deveras contrariado e retrucou que minha abordagem era de muito mau gosto. Na
verdade, a minha intenção era mesmo irritá-lo, ante sua antipática e permanente
insistência para que eu aceitasse suas verdades. Persisti, então, na defesa de
minha macabra tese:
- O senhor sabe muito bem da
previsão bíblica de que no momento do parto tem que haver dor! Não sou eu que
estou inventando a regra. Assim está determinado lá em Gênesis, três,
dezesseis: “... em dores de parto darás à luz filhos” – arrematei.
O pastor, diante da citação
bíblica, ainda tentou dar-me alguma interpretação que justificasse a cesariana.
Eu, porém, não estava disposto a ouvir outro rosário de argumentos ilógicos. E
para livrar-me de um novo suplício, interrompi-o, aleguei um compromisso
inadiável, despedi-me de todos, liguei o carro e fui saborear uns caranguejos
lá na Praia de Tambaú, deixando ali a promessa de retornar futuramente ao
assunto.
Felizmente esse momento nunca
aconteceu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário