sábado, 24 de outubro de 2015

PARA QUE SE CUMPRISSEM AS ESCRITURAS

(Anchieta)
Durante alguns anos, fui seminarista católico da ordem secular.
Naquele ambiente de radical disciplina, éramos condicionados a uma permanente dicotomia entre Deus e o Diabo. Um gesto, uma palavra ou um pensamento, por mais insignificante que fosse, somava pontos para os fulgores do céu ou para as labaredas do inferno. Assim, eram vinte e quatro horas diárias respirando, até mesmo nos sonhos e pesadelos, bem-aventuranças e pecados.
Em tenra idade, minha inocente alma infantil acreditava piamente em tudo que me era dito. Mas o tempo foi passando e algumas perguntas sem respostas convincentes, frutos do despertar da razão, começaram a inquietar-me. E quando me tornei adolescente, mergulhei numa verdadeira confusão espiritual. Parecia ecoar dentro de mim um grito: - não me enrolem!
Certo dia, através da tela de palhinhas do confessionário, o velho padre Fernando, deveras irado contra o que ele chamou de pecado contra o Espírito Santo, alertou-me de que, se naquele momento eu tivesse morrido sem arrependimento, estaria com certeza no fogo do inferno. Aquelas palavras causaram-me um sentimento horrível de candidato a churrasco eterno e me fustigaram por longo tempo.
Depois de muitos conflitos interiores, sobremodo a respeito dos dogmas de fé, saí do seminário deveras confuso e quase um ateu. Segui então pela vida afora na certeza de que, na luta entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno, entre Deus e o Diabo, cada religião possui sua verdade. Uma verdade que sempre é mentirosa, mas que para seus fiéis, é sempre a verdade mais verdadeira do universo. Ai de quem pensar diferente! Cada uma delas confere a seu Deus particular, de forma inquestionável e inexorável, todo o poder, toda a perfeição, toda a sabedoria, toda a bondade e, também, toda a maldade possível.
Procurei construir, sem medo, as minhas concepções de Deus. Busquei senti-Lo como fonte de verdadeiro e infinito amor. Abominei para todo o sempre, aquele Deus impiedoso e terrível, que no contexto geral da existência, é sempre autor ou inspirador de muita crueldade e pequenez.  O Deus que em mim restou concebido está bem acima de tudo isso.
Quanto ao Diabo, também mudei o seu conceito. Já não o responsabilizo pela prática daquilo que eu mesmo decido fazer. Como é bom ter alguém para quem transferir o malfeito...  Não é mesmo?
Hoje, ocorreu-me recordar aqui um fato acontecido muitos anos após haver eu deixado o Seminário Arquidiocesano da Paraíba. Em 1978, lá em João Pessoa, quando já me fizera avesso a qualquer assunto religioso, um pastor da igreja protestante frequentada por esposa e filhas resolveu visitar-me, devidamente acompanhado da esposa, com a nítida intenção de "salvar-me". Pelo menos senti essa pretensão logo nos primeiros momentos de nossa conversa. Estava ele presunçosamente disposto a tirar-me da perdição, expurgando de uma vez por todas, os mistérios e os segredos das coisas divinas. Realmente ele se dava ares de um homem de Deus, de um sábio, de um santo, de um profeta, enquanto eu – coitado de mim! – não passava de um reles pecador, sórdido e ignorante, um acólito de satanás.
Sempre fui um mau ouvinte incorrigível, mas me contive a todo custo, e o deixei falar por um longo tempo, sem interrompê-lo. Depois de alguns momentos, não mais suportei minha mudez e fui soltando a língua para também externar minhas contraposições. Perdemos, assim, quase toda uma manhã confabulando, num longo e inócuo debate.
Já próximo do meio-dia, entramos no que se pode chamar de capítulo final. Esposa e filhas almoçariam em evento da igreja, enquanto eu estaria com amigos em alguma barraquinha profana da orla. Consultei o relógio, deixando transparecer que queria concluir o papo. Foi aí que me inspirei no fato de sua esposa estar passando pelos últimos dias de gravidez. O parto estava previsto para a semana seguinte. Lembrando-me disso, investi:
- Pastor, o senhor acabou de me dizer que na bíblia inexiste qualquer erro ou equívoco. Isso é mesmo uma verdade irrefutável? 
- Claro! É a palavra de Deus! Seria atribuir erros a Deus! Deus não erra!
Embora eu já soubesse que a criança viria ao mundo por meio de uma operação cesariana, emendei, maliciosamente:
- O parto de sua esposa será feito com os procedimentos ditos normais?
- Não. Vamos fazer uma cesariana.
- Como, pastor? Não pode! Uma cesariana se conflita com o que diz a Bíblia.
- Como assim? Não estamos fazendo nada que vá de encontro aos ditames de Deus - justificou o arrebanhador de almas.
- Claro que está! Ou o parto é normal ou a operação terá de ser feita sem anestesia!   -  disse-lhe eu, com exagero proposital.
Dona Lúcia, a esposa do pastor, uma jovem senhora muito bonita, brincalhona, descontraída e sem frescuras, desprovida daqueles hipócritas padrões de santidade, levou o assunto na galhofa. Depois de gostosa gargalhada, mandou que eu mesmo fosse parir daquela forma, ou seja, sem anestesia. E como colega de sala de aula na Universidade Federal da Paraíba, usou da natural liberdade de mandar-me à merda. Sorrimos juntos. 
O pastor, entretanto, ficou deveras contrariado e retrucou que minha abordagem era de muito mau gosto. Na verdade, a minha intenção era mesmo irritá-lo, ante sua antipática e permanente insistência para que eu aceitasse suas verdades. Persisti, então, na defesa de minha macabra tese:
- O senhor sabe muito bem da previsão bíblica de que no momento do parto tem que haver dor! Não sou eu que estou inventando a regra. Assim está determinado lá em Gênesis, três, dezesseis: “... em dores de parto darás à luz filhos” – arrematei.
O pastor, diante da citação bíblica, ainda tentou dar-me alguma interpretação que justificasse a cesariana. Eu, porém, não estava disposto a ouvir outro rosário de argumentos ilógicos. E para livrar-me de um novo suplício, interrompi-o, aleguei um compromisso inadiável, despedi-me de todos, liguei o carro e fui saborear uns caranguejos lá na Praia de Tambaú, deixando ali a promessa de retornar futuramente ao assunto.
Felizmente esse momento nunca aconteceu.

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