(ESPAÇO DO ANCHIETA - Jornal PÁGINA 20 - Edição de 21/11/2015)
Se ainda hoje é muito difícil
para os militares da fronteira amazônica dedicarem-se aos estudos, em razão das
peculiaridades da profissão e das permanentes missões por eles desempenhadas,
avaliem só como não era antigamente.
Naquele ambiente de
dificuldades, todo soldado engajado sonhava ser cabo e todo cabo sonhava ser
sargento. Raramente, contudo, algum deles conseguia ser aprovado nos concursos
para acesso à graduação superior, pois não dispunham de horários para se
dedicarem aos livros. Além dessa escassez de tempo, aliada ao cansaço impingido
pelo cotidiano da vida castrense, os concursos não eram dos mais fáceis,
tornando deveras longínqua tão ambicionada pretensão.
Há umas quatro décadas, na
então Quarta Companhia de Fronteiras, sediada em Rio Branco, capital do Estado
do Acre, um desses comandantes mais humanos e mais preocupados com o lado
social e com o crescimento de seus comandados, pôs a valer uma iniciativa elogiável. Após
as devidas adaptações nos horários do quartel, fez funcionar dois
cursos preparatórios: - um grupo seria constituído pelos soldados mais antigos
e menos escolarizados, a fim de possibilitar-lhes o ingresso no curso de formação
de cabos, anualmente realizado no Comando Militar da Amazônia, em Manaus; o
outro seria destinado a quem possuísse um nível escolar mais elevado, que
lhes auferisse condições para ingressar na Escola de Sargentos das Armas, lá em
Três corações, Minas Gerais. Para isso, o bondoso coronel mandou fazer um
levantamento de quais sargentos e oficiais estavam capacitados para ministrarem
as aulas e atribuiu-lhes a missão.
As maiores dificuldades de
aprendizado, como era de se esperar, residiam nos assombrosos fantasmas da matemática,
disciplina que ficara sob a responsabilidade do sargento Joaquim Ferreira,
graduado no assunto pela Universidade Federal do Acre. E foi justamente dentro
do contexto da matemática que ocorreu o fato pitoresco que aqui relatamos.
Um dos soldados, com nome de
José Caiçara e apelido de “Quati”, já com doze anos de caserna, era candidato
ao curso de cabos. Estudara tão somente, em sua infância distante, até o
segundo ano primário duma escola rural embrenhada num desses nossos afastados
seringais. Diante, porém, daquela grande oportunidade, o velho praça
motivou-se todo, não se deu por vencido e partiu para o desafio.
Durante os primeiros quinze
dias o “Quati” não sentiu maiores complicações. A orientação do comandante era
que tudo deveria começar do nível mais rudimentar possível. Os assuntos de
Língua Portuguesa, por exemplo, tiveram início na revisão do alfabeto, sua
divisão em vogais e consoantes etc., numa abordagem tão simples que mais se
parecia com as antigas aulas da histórica “Carta de A-B-C”. Na Aritmética
também o pontapé inicial se deu nos moldes da velha tabuada, com soluções
de pequenas contas de somar e diminuir. Assim, tudo ocorria com muito
otimismo e perseverança. Os resultados eram promissores.
Todavia, passados os primeiros
dias, o “Quati”, inesperadamente, foi obrigado a abandonar a sala de aula por
um período considerável. Que tristeza! Escalaram-no para uma missão lá
para as bandas de Santa Rosa do Purus. É que, quando se tratava
de embrenhar-se na floresta, ninguém era tão respeitado quanto
ele. Seu nome estava sempre na cabeça da lista, antes mesmo de se saber
quem seria o comandante. Quati podia ser um semianalfabeto, mas era um
doutor no convívio com os mistérios da selva.
Passaram-se os dias. Mais de
um mês após o início de sua aventura por matas e rios, o “Quati”
voltou. E na mesma data de seu retorno, já estava ele lá na
sala de aula, junto dos companheiros de estudo, buscando recuperar o tempo
perdido e tentando aprender a terrível matemática. Pelo visto, a matéria
já houvera avançado bastante. O sargento Joaquim Ferreira se desdobrava,
explicando e solucionando problemas no quadro-negro, momento em que sempre
procedia com desmedida paciência e punha em prática a melhor didática possível.
O “Quati” sentou-se lá atrás e entregou-se totalmente a prestar atenção.
Meia-hora depois se conscientizou de que não entendera patavina e se
sentia mais por fora do que cebola em salada de frutas. Para
completar seu desengano, ouviu, neste momento, Joaquim Ferreira ler em voz
alta o enunciado de mais um problema colocado na lousa:
- “A” é igual a “B” mais seis. Qual o valor de
“A”, se “B” for igual a quatorze?
O Quati, olhos esbugalhados,
encheu-se de terror. Aquilo era a gota d`água. O soldado sentiu-se totalmente
violentado. Não seria possível entrar em sua cabeça aquele negócio de
números convivendo, no mesmo problema, com as letras do alfabeto. Levantou-se,
colocou o caderno debaixo do braço, pediu licença ao sargento, e dirigiu-se à
porta de saída.
O Joaquim parou de explicar e
voltou-se para o Quati:
- Já vai, Caiçara?
- Já, meu Sargento!
- Mas, por quê, rapaz?
- Matemática já é
difícil... e agora o Senhor misturando com português... desisto! – falou
humildemente o Quati.
Não adiantou qualquer argumento
do Joaquim Ferreira.
O coitado realmente desistiu,
teve multiplicado o seu ódio por números, nunca mais voltou a uma sala de aula
e passou toda a sua vida de caserna como soldado raso.
(Anchieta)
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