terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O BECO DE CADA UM

O poeta Manuel Bandeira, em seu “Poema do Beco”, publicado no livro “Estrela da Manhã”, em 1936, talvez tenha registrado tão somente um momento singular de sua vida, quando morava no bairro da Lapa, lá no Rio de Janeiro, entretanto, em apenas dois versos, possibilitou-nos navegar para muito além de seu beco e da exuberante Baía de Guanabara:
“Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.”.
  O poema, a despeito de somente o poeta saber o que retratou e porque o fez, também nos leva àquele personagem para quem a vida tem sempre a mesma música, o mesmo tom, a mesma cor, o mesmo roteiro. Nada mais lhe interessa, além de seu beco, por mais que seja esplendoroso e diferente aquilo que seus olhos não conseguem enxergar. A vida acontece sem novos sonhos, sem outras crenças, sem novas ambições, sem nada mais do que os mesmíssimos lugares-comuns do cotidiano. Ali está o melhor dos mundos em seu espremido quadradinho.  Ali não existe nada além daquilo que os olhos se acostumaram a ver, os ouvidos a ouvir, as mãos a apalpar, e onde os pés estão calejados de fazer rastros sobre os próprios rastros. O divino e o profano se misturam, como se Deus e o Diabo convivessem sem qualquer litígio. O beco é tudo, simplesmente tudo. Por que se preocupar com outras coisas?
Independentemente do nível que ocupamos no contexto do mundo, é preciso que vigiemos o nosso beco particular, para não nos condenarmos à mesmice, à cegueira, à indolência.  Indiferentes a tudo, podemos nos tornar adeptos de um conformismo em que nos basta responder passivamente para nós mesmos: “tá tudo bem!”, “Deus quis assim!”, “fazer o quê?”, “tanto faz como tanto fez”.  Sequer ambicionamos aquele algo mais, porque nada existe além do que existe no beco. Não há nada a questionar ou a combater e, por isso, não existem lutas para lutar. Não temos tempo, nem se acende a luz, para enxergar alguma beleza lá fora. Ali nos internamos e permanecemos. A vida vira um carimbo, um clichê. Nossa visão só alcança o varadouro por onde passamos todos os dias. O beco vira nosso internato e nossa passarela. Tudo está perfeito. Vivemos nosso cotidiano como os bois dos antigos engenhos de cana de açúcar (nem sei se ainda hoje existem), que giravam de sol a sol em torno de um mourão, e ao final da jornada estavam ali no mesmíssimo lugar.
Nosso beco é uma espécie de pátria particular. O resto é o resto.
A Carta-Magna de nosso beco é fundamentada estritamente nas regras do egoísmo: Somente a nossa igreja leva ao céu, somente o futebol deveria existir como esporte, somente nosso time deveria ser time, só presta a cachacinha e a cerveja que bebemos, e apenas nossa escola de samba deveria existir.
Não nos interessa qualquer olhar crítico. Nosso beco é o grande beco e, em seu interior, tudo é inquestionavelmente uma maravilha. Mesmo que ali fossas e mais fossas estejam a céu aberto, transbordantes e fedorentas, só conseguimos sentir os mais finos perfumes rescendendo de seus labirintos. As doenças, os reveses da vida, o infortúnio, a infelicidade e a dor, são oriundos de outros varadouros, pois aquilo que é nocivo nunca provém de nosso beco. A culpa é sempre dos malditos becos estrangeiros.
Ao beco, ajustamo-nos de tal forma, que nós somos o beco e o beco somos nós. As regras daquele espaço, sagrado e profano ao mesmo tempo, são as melhores do mundo. Ali é nosso universo, com nossas divindades e nossos capetas. E tão magnificamente o é, que a alma do beco é nossa própria alma.

O beco dos outros? Uma merda! Dane-se o resto do mundo, com seus becos insuportáveis e malcheirosos. Viva o nosso beco! 
José de Anchieta Batista

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