O poeta Manuel Bandeira, em seu
“Poema do Beco”, publicado no livro “Estrela da Manhã”, em 1936, talvez tenha registrado
tão somente um momento singular de sua vida, quando morava no bairro da Lapa,
lá no Rio de Janeiro, entretanto, em apenas dois versos, possibilitou-nos
navegar para muito além de seu beco e da exuberante Baía de Guanabara:
“Que
importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?
-
O que eu vejo é o beco.”.
O poema, a despeito de somente o poeta saber o que retratou e porque o
fez, também nos leva àquele personagem para quem a vida tem sempre a mesma
música, o mesmo tom, a mesma cor, o mesmo roteiro. Nada mais lhe interessa, além
de seu beco, por mais que seja esplendoroso e diferente aquilo que seus olhos
não conseguem enxergar. A vida acontece sem novos sonhos, sem outras crenças,
sem novas ambições, sem nada mais do que os mesmíssimos lugares-comuns do cotidiano.
Ali está o melhor dos mundos em seu espremido quadradinho. Ali não existe nada além daquilo que os olhos
se acostumaram a ver, os ouvidos a ouvir, as mãos a apalpar, e onde os pés
estão calejados de fazer rastros sobre os próprios rastros. O divino e o
profano se misturam, como se Deus e o Diabo convivessem sem qualquer litígio. O
beco é tudo, simplesmente tudo. Por que se preocupar com outras coisas?
Independentemente do nível que
ocupamos no contexto do mundo, é preciso que vigiemos o nosso beco particular,
para não nos condenarmos à mesmice, à cegueira, à indolência. Indiferentes a tudo, podemos nos tornar
adeptos de um conformismo em que nos basta responder passivamente para nós
mesmos: “tá tudo bem!”, “Deus quis assim!”, “fazer o quê?”, “tanto faz como
tanto fez”. Sequer ambicionamos aquele
algo mais, porque nada existe além do que existe no beco. Não há nada a
questionar ou a combater e, por isso, não existem lutas para lutar. Não temos
tempo, nem se acende a luz, para enxergar alguma beleza lá fora. Ali nos
internamos e permanecemos. A vida vira um carimbo, um clichê. Nossa visão só alcança
o varadouro por onde passamos todos os dias. O beco vira nosso internato e
nossa passarela. Tudo está perfeito. Vivemos nosso cotidiano como os bois dos
antigos engenhos de cana de açúcar (nem sei se ainda hoje existem), que giravam
de sol a sol em torno de um mourão, e ao final da jornada estavam ali no
mesmíssimo lugar.
Nosso beco é uma espécie de pátria
particular. O resto é o resto.
A Carta-Magna de nosso beco é
fundamentada estritamente nas regras do egoísmo: Somente a nossa igreja leva ao
céu, somente o futebol deveria existir como esporte, somente nosso time deveria
ser time, só presta a cachacinha e a cerveja que bebemos, e apenas nossa escola
de samba deveria existir.
Não nos interessa qualquer olhar
crítico. Nosso beco é o grande beco e, em seu interior, tudo é inquestionavelmente
uma maravilha. Mesmo que ali fossas e mais fossas estejam a céu aberto,
transbordantes e fedorentas, só conseguimos sentir os mais finos perfumes
rescendendo de seus labirintos. As doenças, os reveses da vida, o infortúnio, a
infelicidade e a dor, são oriundos de outros varadouros, pois aquilo que é
nocivo nunca provém de nosso beco. A culpa é sempre dos malditos becos
estrangeiros.
Ao beco, ajustamo-nos de tal forma,
que nós somos o beco e o beco somos nós. As regras daquele espaço, sagrado e
profano ao mesmo tempo, são as melhores do mundo. Ali é nosso universo, com
nossas divindades e nossos capetas. E tão magnificamente o é, que a alma do
beco é nossa própria alma.
O beco dos outros? Uma merda!
Dane-se o resto do mundo, com seus becos insuportáveis e malcheirosos. Viva o
nosso beco!
José de Anchieta Batista
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