(ESPAÇO DO ANCHIETA: Jornal Página
20, de 20/03/2016, Rio Branco - Acre)
João Pessoa, 1974. Naquele domingo ensolarado, meu amigo Zeca estava, mais uma vez, em discussão com a velha sogra. O motivo? Esquivava-se radicalmente de acompanhá-la aos cultos da igreja protestante do bairro.
- Dona Doralice, deixe de insistência,
mulher! A senhora bem sabe que detesto esse negócio de igreja. Além disso, já
tenho meus compromissos - respondeu Zeca,
revoltado com a sogra.
- Sei muito bem quais são seus compromissos!
Vai se entregar ao diabo no meio daquele bando de pinguços! Com certeza também
tem umas quengas por lá. Ora se tem?! Depois não se arrependa do fogo eterno! –
gritou dona Doralice.
- Deixa comigo, velhinha. Pelo menos no
inferno deve existir uma pinguinha e algum diabinho tocando um forró. A senhora
com certeza também estará lá. Isso será bom, porque quando eu não tiver o que
fazer, vou soprar e abanar as suas brasas – galhofou o Zeca.
- Sangue de Cristo tem poder, seu sem-vergonha!
- bradou dona Doralice.
Intimamente, a velha senhora resmungona não
levava muito a sério os desaforos e galhofas do Zeca. Ficava às vezes trombuda,
mas, em algumas oportunidades, até sorria. Tolerava aquele jeitão do genro, sem
radicalizar em suas censuras. Afinal, não era um bebedor de todos os dias,
trabalhava duro em sua oficina mecânica e não deixava faltar nada à família. Mesmo depois de dez anos de casados, ainda
demonstrava grande amor por sua filha, proporcionando-lhe o conforto e a
atenção invejada por muitas mulheres.
Giordana, esposa do Zeca, uma linda
sertaneja dos mundos de Conceição do Piancó, não era lá uma crente da primeira
fileira, porém estava sempre segurando o braço da idosa mãe, nos ofícios da fé,
fazendo-o como sagrada obrigação de filha. Só interferia nas discussões entre a mãe e o
Zeca, quando a coisa esquentava demais.
Para não perder totalmente de vista o
marido nos finais de semana, Giordana, sempre alertada pela mãe, fazia questão
de acompanhá-lo em algumas oportunidades. Todavia, que se tenha notícia, nunca
foi ele flagrado pulando o muro. Se o fazia, era num grande subterfúgio. Seu
fraco era tomar umas biritas, principalmente aos domingos, saboreando
caranguejos e caldos de peixe, numa barraquinha de Cabedelo, frequentada por poetas,
artistas e tocadores de viola.
Às oito e meia daquele domingo, lá se foi
dona Doralice, bíblia na mão, acompanhada da filha e da netinha para a Igreja,
a cem metros de casa. Às dez, o Zeca se mandou para o tradicional compromisso
com sua confraria dominical. Era como se a presença no “Bar do Chico Piaba” tivesse
também um caráter religioso.
O Zeca retornou ao pôr do sol e estacionou
o carro na frente da casa. A sogra logo notou um dos lados amassado. No percurso de volta, um porquinho atravessou
a estrada correndo e, ao desviá-lo, o carro foi de encontro a um cajueiro. As
biritas consumidas certamente ajudaram a consumar aquele fato. Bom ressaltar
que naquele tempo inexistia bafômetro e era pouco fiscalizado o estado etílico
do condutor.
Dona Doralice, até parecia cheia de
prazer, quando chamou a filha para ver o estrago.
- Giordana, vem olhar o castigo de Jesus!
Eu não disse? É isso que cachaça faz! Se estivesse nos caminhos de Deus, isto
não teria acontecido. É castigo! Castigo! Castigo, mesmo!
O genro revoltou-se:
- Castigo, coisa nenhuma, sua bruxa velha!
Isso tinha de acontecer!
A velha não se calou:
- Veja o estado da “Brasília”! Adquirida
nesta semana e já parece uma fubica velha!
- Cala a boca, dona Doralice! O problema é
meu! Vou deixar o carro novamente zerado, cacete! Aliás, este carro é meu e a
senhora fique na sua!
- Não fico! O que é ruim é da conta de
todo mundo. Foi a maldita cachaça! Isso é castigo de Jesus, sim! Castigo, viu?
Giordana, na sua calma de sempre, conduziu
com muito jeito o marido para dentro do quarto, evitando assim o acirramento de
mais um conflito.
Tudo voltou ao normal, não mais se tocou
no assunto e, durante a semana, Zeca, como exímio especialista no assunto,
deixou o automóvel como se houvesse saído da fábrica.
Um mês depois, outro fato aconteceu. O
filho da dona Doralice, Pastor Jeremias, acidentou-se. O arrebanhador de
ovelhas avançou o sinal vermelho de um cruzamento e colidiu violentamente com
outro veículo. Somente ele se feriu com maior gravidade. Sofreu um corte na
fronte e teve uma das pernas fraturada. O carro ficou seriamente avariado.
Gastaria um bom dinheiro para recuperá-lo, além das despesas com o outro
veículo atingido.
No momento em que recebeu a notícia, a
idosa entrou em desespero, mas se acalmou ao ser convencida de que não haveria
maiores consequências com a saúde do filho.
No outro dia, à tardinha, sentado no
alpendre, Zeca consertava um ventilador. Um pouco afastada, a velha sogra, com
a Bíblia aberta, orava em voz alta, agradecendo ao Senhor Jesus o milagre de
haver salvo da morte o seu filho Jeremias.
- Obrigado, meu Jesus, por preservar a
vida de meu filho. Um santo filho, um apóstolo teu, um verdadeiro profeta. Com
certeza foi uma provação! Uma grande provação. E só tu sabes a razão desta
provação para ele.
O Zeca não se conteve e gritou:
- Epa! Que é isso, dona Doralice? Que
história é essa de ser castigo pra mim e provação pra ele? Se é castigo pra
mim, é castigo pra ele também. Deve ser a ganância dele pelo dinheirinho do
povo da igreja. Só falta tomar na marra o dízimo daqueles pobres coitados! Provação,
porra nenhuma! Foi castigo mesmo!
Aí, o pau quebrou. Instalou-se uma
confusão infernal. Um furdunço dos diabos.
Culminou com a sogra mudando-se de vez
para a casa do pastor Jeremias, coisa que a Giordana, mesmo dispensando muito
amor à mãe, desejava há muito tempo.
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