O velho e arrogante
senhor explodiu:
- Levante-se e me preste continência,
sargento! Quem é você para duvidar da palavra de um general? Já fui comandante
deste quartel e não admito que, para entrar nele, eu precise lhe exibir um
documento de identidade.
A idosa esposa do general tentava debalde
acalmá-lo, mas parecia irritá-lo muito mais:
- Fique na sua, mulher! Não se meta em
assunto militar! Disso entendo eu!
O sargento da guarda ficou sem saber como
agir, diante da extrema arrogância daquele idoso, à paisana, que, aos gritos, se
dizia general.
- Estou cumprindo ordens regulamentares,
meu senhor – respondeu-lhe o sargento.
- Coisa nenhuma! Recolha-se a sua
insignificância e me mostre onde fica a Seção dos Inativos e Pensionistas.
Depois quero também falar com seu comandante!
– gritou em alta voz, visivelmente enraivecido.
Naquele momento o oficial de dia
aproximou-se, tomou posição de sentido, levou a mão à pala, fez sua
apresentação, conforme previsto no regulamento militar, e acrescentou:
- Boa tarde, General! Seja bem-vindo ao
nosso regimento. Estarei à disposição de Vossa Excelência para que seja
devidamente atendido.
O jovem oficial já o conhecia de eventos
no Círculo Militar.
A presença reverente e prestimosa do
tenente, acompanhando-o durante toda sua permanência no quartel, inclusive na
visita ao gabinete do comandante, pareceu satisfazer aquela personalidade
vaidosa e autoritária. E o velho general saiu dali com a alma reconfortada.
Os mais antigos, contemporâneos de seu
período como comandante do regimento, ainda no posto de coronel, estranhavam a
mudança de personalidade desenvolvida em seu antigo chefe. Nunca se comportava
com arrogância e primava sempre pelo tratamento respeitoso aos subordinados. Agora, o velho militar parecia outra pessoa
totalmente diferente. Seu jeito de ser modificara-se radicalmente.
A idade-limite para permanência como
general, em serviço ativo, alcançou-o, aos sessenta e quatro anos, quando servia
no Ministério do Exército, em Brasília, sendo transferido compulsoriamente para
a inatividade, em observância aos ditames do Estatuto dos Militares. Isto
significou uma espécie de funeral antecipado para o velho combatente. A
preterição de seu nome nas últimas promoções foi também um golpe indescritível.
Extinguira-se de vez a possibilidade de tornar-se general de quatro estrelas, posto
que lhe possibilitaria realizar o sonho de ser Ministro do Exército. Dessa
forma, possuído de grande revolta em sua alma, vestiu melancolicamente seu
pijama, optando, então, por residir na cidade do Recife, sua terra natal, para
onde se mudou, tão logo recebeu a aposentação.
A vida continuou. O velho general, porém, nunca
se adaptou à nova situação de vida. Entrou num estado de instabilidade emocional
nunca visto. Intercalava momentos de agressividade, com outros de alta
depressão. Mergulhou, assim, num mundo da mais absoluta inconformação e revolta:
às vezes gritava sem o menor motivo; noutras vezes entrava em estado de completa
mudez; durante o sono, dava comandos de ordem unida, gritava com supostos
subordinados, ou fazia recomendações a uma tropa imaginária. A família vivia de
prontidão em todos os momentos, temerosa de que ele, em algum instante de
desvario, praticasse o suicídio.
Dois
anos depois daquele incidente com o sargento da guarda, o velho general viajou
para o mundo dos mortos, acometido de aguda deficiência respiratória,
decorrente de sua condição de fumante inveterado. Havia completado sessenta e
sete anos de vida, embora parecesse bem mais velho.
As honras militares foram dirigidas ao grande
soldado, ao ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, ao militar
exemplar, ao general cheio de glórias e de condecorações. A leitura de sua
invejável trajetória foi muito extensa. Os elogios e as medalhas,
principalmente as de bravura, davam-lhe um porte de verdadeiro herói! Naquele momento, contudo, ninguém, nem mesmo a
própria família, minimamente se dava conta de estarem dizendo adeus a alguém
que, naquele final de jornada, era o oposto de tudo o que estava registrado em
seus memoráveis assentamentos militares. O ser humano que era ali homenageado de
forma tão distinta, e que ocupava tão luxuosa urna funerária, honrosamente coberta
com a Bandeira do Brasil, vivera seus últimos dias como um guerreiro derrotado,
um rei destronado, um espectro de si mesmo, um homem frustrado e infeliz.
O velho general, entretanto, em seu
melancólico fim, deixou-nos uma reflexão sobre o exercício do poder, este
monstro terreno, que mesmo vivido de maneira tão efêmera, contamina seu
detentor de forma tão permanente. O fascínio inebriante do poder traz a maldita
ilusão de que as benesses nunca passarão e o amanhã nunca chegará. O poder
desfrutado, quase sempre, deixa grandes sequelas em seu ex-detentor. Dele
despidos, muitos se revoltam, se maldizem, se tornam infelizes, e até choram a
grande desdita. No caso do velho militar, a morte brusca de suas ambições de
final de carreira veio somar-se ao suplício de sua condenação ao ostracismo tão
comum a um general da reserva.
Na verdade, as homenagens, as insígnias, os
títulos, as deferências, as prerrogativas, o trato diferenciado, os afagos dos
bajuladores e oportunistas, os lugares na primeira fileira, etc., um dia se
acabarão. E embora todas essas coisas sejam meros instrumentos, pantomimas e
rituais que preenchem o âmbito do poder, na maioria dos casos, seus falsos
valores adoecem, de maneira incurável, o mais profundo da alma.
O velho general não suportou a ausência do
brilho de suas estrelas.
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