sexta-feira, 1 de abril de 2016

A LIÇÃO DO VELHO GENERAL

O velho e arrogante senhor explodiu:
- Levante-se e me preste continência, sargento! Quem é você para duvidar da palavra de um general? Já fui comandante deste quartel e não admito que, para entrar nele, eu precise lhe exibir um documento de identidade.
A idosa esposa do general tentava debalde acalmá-lo, mas parecia irritá-lo muito mais:
- Fique na sua, mulher! Não se meta em assunto militar! Disso entendo eu!
O sargento da guarda ficou sem saber como agir, diante da extrema arrogância daquele idoso, à paisana, que, aos gritos, se dizia general.
- Estou cumprindo ordens regulamentares, meu senhor – respondeu-lhe o sargento.
- Coisa nenhuma! Recolha-se a sua insignificância e me mostre onde fica a Seção dos Inativos e Pensionistas. Depois quero também falar com seu comandante!  – gritou em alta voz, visivelmente enraivecido.
Naquele momento o oficial de dia aproximou-se, tomou posição de sentido, levou a mão à pala, fez sua apresentação, conforme previsto no regulamento militar, e acrescentou:
- Boa tarde, General! Seja bem-vindo ao nosso regimento. Estarei à disposição de Vossa Excelência para que seja devidamente atendido.
O jovem oficial já o conhecia de eventos no Círculo Militar.
A presença reverente e prestimosa do tenente, acompanhando-o durante toda sua permanência no quartel, inclusive na visita ao gabinete do comandante, pareceu satisfazer aquela personalidade vaidosa e autoritária. E o velho general saiu dali com a alma reconfortada.
Os mais antigos, contemporâneos de seu período como comandante do regimento, ainda no posto de coronel, estranhavam a mudança de personalidade desenvolvida em seu antigo chefe. Nunca se comportava com arrogância e primava sempre pelo tratamento respeitoso aos subordinados.  Agora, o velho militar parecia outra pessoa totalmente diferente. Seu jeito de ser modificara-se radicalmente.
A idade-limite para permanência como general, em serviço ativo, alcançou-o, aos sessenta e quatro anos, quando servia no Ministério do Exército, em Brasília, sendo transferido compulsoriamente para a inatividade, em observância aos ditames do Estatuto dos Militares. Isto significou uma espécie de funeral antecipado para o velho combatente. A preterição de seu nome nas últimas promoções foi também um golpe indescritível. Extinguira-se de vez a possibilidade de tornar-se general de quatro estrelas, posto que lhe possibilitaria realizar o sonho de ser Ministro do Exército. Dessa forma, possuído de grande revolta em sua alma, vestiu melancolicamente seu pijama, optando, então, por residir na cidade do Recife, sua terra natal, para onde se mudou, tão logo recebeu a aposentação.
A vida continuou. O velho general, porém, nunca se adaptou à nova situação de vida. Entrou num estado de instabilidade emocional nunca visto. Intercalava momentos de agressividade, com outros de alta depressão. Mergulhou, assim, num mundo da mais absoluta inconformação e revolta: às vezes gritava sem o menor motivo; noutras vezes entrava em estado de completa mudez; durante o sono, dava comandos de ordem unida, gritava com supostos subordinados, ou fazia recomendações a uma tropa imaginária. A família vivia de prontidão em todos os momentos, temerosa de que ele, em algum instante de desvario, praticasse o suicídio.  
 Dois anos depois daquele incidente com o sargento da guarda, o velho general viajou para o mundo dos mortos, acometido de aguda deficiência respiratória, decorrente de sua condição de fumante inveterado. Havia completado sessenta e sete anos de vida, embora parecesse bem mais velho.
As honras militares foram dirigidas ao grande soldado, ao ex-combatente da Força Expedicionária Brasileira, ao militar exemplar, ao general cheio de glórias e de condecorações. A leitura de sua invejável trajetória foi muito extensa. Os elogios e as medalhas, principalmente as de bravura, davam-lhe um porte de verdadeiro herói!  Naquele momento, contudo, ninguém, nem mesmo a própria família, minimamente se dava conta de estarem dizendo adeus a alguém que, naquele final de jornada, era o oposto de tudo o que estava registrado em seus memoráveis assentamentos militares. O ser humano que era ali homenageado de forma tão distinta, e que ocupava tão luxuosa urna funerária, honrosamente coberta com a Bandeira do Brasil, vivera seus últimos dias como um guerreiro derrotado, um rei destronado, um espectro de si mesmo, um homem frustrado e infeliz.
O velho general, entretanto, em seu melancólico fim, deixou-nos uma reflexão sobre o exercício do poder, este monstro terreno, que mesmo vivido de maneira tão efêmera, contamina seu detentor de forma tão permanente. O fascínio inebriante do poder traz a maldita ilusão de que as benesses nunca passarão e o amanhã nunca chegará. O poder desfrutado, quase sempre, deixa grandes sequelas em seu ex-detentor. Dele despidos, muitos se revoltam, se maldizem, se tornam infelizes, e até choram a grande desdita. No caso do velho militar, a morte brusca de suas ambições de final de carreira veio somar-se ao suplício de sua condenação ao ostracismo tão comum a um general da reserva. 
Na verdade, as homenagens, as insígnias, os títulos, as deferências, as prerrogativas, o trato diferenciado, os afagos dos bajuladores e oportunistas, os lugares na primeira fileira, etc., um dia se acabarão. E embora todas essas coisas sejam meros instrumentos, pantomimas e rituais que preenchem o âmbito do poder, na maioria dos casos, seus falsos valores adoecem, de maneira incurável, o mais profundo da alma.  
O velho general não suportou a ausência do brilho de suas estrelas. 
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