José de Anchieta Batista
Trago, de minha infância, lembranças de muitos momentos de terror, e disso,
esta maldita, chamada morte, foi sempre a causadora número um. Pensar em morrer, ser jogado num buraco e ter
o corpo coberto de terra, fazia-me viver momentos de verdadeiro pânico. Imaginar
que minha mãe ou meu pai morresse, deixando-me órfão, era algo muito atroz para
minha cabeça de criança. Não sei quantas vezes chorei e perdi o sono por isso.
Em Aparecida, lugarejo onde morei quando menino, naquele sertãozão da
Paraíba, ao se ouvir, em qualquer momento do dia, o barulho do gerador de luz
e, logo em seguida, a difusora tocar a “Ave-Maria de Schubert”, todo mundo já
sabia que alguém virara defunto. Enquanto Domiciano, o locutor, avisava de
forma condoída, com pequenos intervalos, que alguém partira para o outro mundo,
o sacristão badalava, no sino da igreja, o toque inconfundível do acontecimento
fúnebre.
Os anos se foram, mas eu trouxe comigo o barulho do motor de luz, a
difusora e seus repetidos anúncios, a melodia inconfundível da clássica
Ave-Maria, as badaladas do sino, os caixões de defunto, o cemitério e suas
catacumbas, e o choro desconsolado dos que ficavam. Como tatuagens invisíveis, permaneceram
em minha alma todos aqueles momentos que sempre faziam do mundo em minha volta
algo carregado de coisas tristes, mal-assombradas e aterrorizantes. Junto a
essas lembranças, ecoavam sempre as palavras do padre Oriel, alertando
ameaçadoramente sobre os nossos destinos depois da morte. Aquilo era cruel. Por
muitos dias, depois de cada enterro, eu me enchia de dois grandes pavores: a
possibilidade de ser visitado pela alma do defunto e, também, um medo horrível
de bater as botas e ser mandado para o fogo do inferno.
O tempo passou e me fiz adulto, mas continuei diante dos mistérios que
envolvem o nascer, o viver e o morrer. Sempre houve mil interrogações
irrespondíveis. Em cada estágio da vida, de alguma forma, embaralhei-me todo
entre as diversas concepções religiosas e as filosofias defensoras de todas as
possibilidades imaginárias. Vaguei por diversos caminhos. Prevalecia algo
absurdo: eu estava na Terra para viver um lapso de tempo, acumulando créditos e
débitos para trocar por um lugar eterno, no céu ou no inferno. Era eu um vaticinado
a duas únicas opções, sem nenhuma apelação: após a morte, seguiria para Deus ou
para o Diabo! E isso, eternamente! Por achar aquilo inconcebível, finalmente mandei
tudo e todos às favas.
Quando me fiz ateu, começou outro tormento. O assédio de pessoas
fanáticas – o fanatismo é uma cegueira – para me livrar do fogaréu de Lúcifer. À ilógica e boba chatice de insistir para que eu
“aceitasse Jesus” a fim de me fazer “salvo”, irritava-me bem mais. Não via um
fiozinho de bondade no deus que me traziam. Ele era pavorosamente mau. E os que
queriam levar-me a ele, também não me pareciam possuir as credenciais. Posso afirmar que, se para entrar nas
bem-aventuranças, os pré-requisitos são as virtudes, eu nunca, nunca, nunca
mesmo, tive o privilégio de conhecer alguém que houvesse conquistado as chaves
deste céu que eles mesmos pregam.
Passado algum tempo, vi-me diante dos ensinamentos da Lei de Causa e
Efeito. Foi aí que pude divisar um Deus lógico e justo, sem o desconforto das
velhas concepções. Por este caminho, Deus não era perverso, nem um pai
desalmado. Deus era amor. Aprendi, então, que em tudo reina uma
irrefutável Justiça. Não só aqui, mas em todo o Universo, o que está posto, no
lugar onde estiver e da forma como estiver, está onde deveria estar. A alegria
e a dor, aqui e ali, seja lá onde se manifestarem, fazendo sorrir ou chorar,
são efeitos de uma causa. Deus é suprema justiça e, por conseguinte, a injustiça
é provocada por nossa imperfeição. Por
essa lei divina, mandamento maior da justiça do Pai Supremo, nada está fora do
lugar; nada está fora do tempo; nada é maior nem menor do que devemos pagar ou
receber. E é sob a égide desta fabulosa
lei, que pomos em prática nosso livre arbítrio e colhemos o que plantamos.
Sou agora absolutamente convicto de que tudo o que acontece em nosso
derredor faz parte, ou passará a fazer parte, dos registros de nosso livro
pessoal de contas correntes. Nada está esquecido nem fugirá dos roteiros de
Deus. O acaso não existe e tudo tem sua
razão de ser. Também não me resta dúvida de que precisaremos voltar mais vezes
à Terra para continuar nossa evolução. É aí que a morte deixa de ser a mãe do
terror e passa a ser um sagrado instrumento de oportunidades.
Para concluir, vamos a um fato de meu acervo pessoal.
Há uns trinta anos, numa parada de ônibus das proximidades da Igreja de
São Peregrino, no bairro da Floresta, eu aguardava um coletivo para o centro de
Rio Branco. Em minha alma fervilhavam problemas. Eu vivia um período de
separação judicial e tinha ido, naquela tarde de domingo, visitar minhas
filhas. Estava ali sozinho, debaixo do abrigo,
pensando nas vicissitudes da vida, quando se aproxima, cambaleante, sujo, esfarrapado,
cabelos desgrenhados, um senhor bêbedo, cotidianamente visto naquelas
redondezas, sempre em estado de embriaguez.
- Boa ... boa... boa tarde, seu... seu doutor! - dirigiu-se a mim, tropeçando nas palavras.
- Boa tarde, amigo - respondi-lhe, embora disposto a não lhe dar papo.
- Vossa Excelência ... me perdoe, mas que hora ...que hora é essa? –
perguntou-me, escorando-se na coluna do abrigo.
Consultei o relógio, sem saber que necessidade tinha aquele pobre
farrapo humano de saber as horas. Com certeza não estaria atrasado para
compromisso nenhum. Que eu soubesse, tudo o que possuía na vida estava
justamente ali. Não tinha casa nem família, alimentava-se da caridade e dormia
onde fosse vencido pelo cansaço.
- São três horas – disse-lhe.
O pobre miserável olhou para mim, e como se de repente incorporasse a
alma de algum filósofo, balbuciou:
- Nem é cedo ... nem é tarde... tá tudo na hora certa.
Pronunciou aquele singelo desabafo, aparentemente sem nexo, escorregou
as costas na coluna de madeira, sentou-se sobre um velho jornal, pousou a cabeça
sobre os antebraços apoiados nos joelhos, e simplesmente adormeceu.
Em cima do que hoje me é possível alcançar, acredito que aquele meu
pobre irmão externou ali uma verdade que naquela época eu desconhecia. Verdade
da qual fazíamos parte, eu, ele e tudo ao nosso redor. É quase certo que jamais
eu venha a saber quem era realmente aquela criatura, nem sua verdadeira
identidade diante de Deus. O que posso afirmar é que ele era um peregrino de si
mesmo.
Nunca mais o encontrei. Dele, porém, uma simples e grande mensagem
ficou, como diz a canção popular: “tudo está em seu lugar, graças a
Deus!”
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