Minha visão é a de que,
no julgamento de Dilma Rousseff, mesmo que tenha sido cumprido o ritual
legalmente previsto, não tivemos algo limpo, nem ali esteve presente a balança
da justiça. Ressalto isto, mas não quero aqui me prender a maiores detalhes da
destituição compulsória de que ela foi vítima. Tampouco desejo, mesmo que minimamente,
criar uma discussão sobre os erros e acertos de sua administração, se a
companheira governou bem ou mal, se merecia ser absolvida ou não. E embora
convivendo no mesmo lado político, não pretendo aqui esgoelar-me inutilmente em
seu favor, visto que tudo está consumado, e de forma irreversível. Meu alvo aqui
é outro.
No ritual da autêntica
inquisição parlamentar, instalada em nossas mais altas casas legislativas, Dilma
Rousseff foi defendida com maestria, brilhantismo e competência pelo eminente advogado
José Eduardo Cardozo. Tudo ficou desnudado, mostrou-se a verdade, mas não teve
jeito. A farsa, devidamente travestida com a indumentária constitucional, foi antecipadamente
preparada, e o resultado haveria de ser um só: seu impedimento de continuar
gerindo os destinos do Brasil.
Em
qualquer ambiente sério do mundo, os fatos, ali esmiuçados e debatidos, resultariam
na comprovação de que as alegadas acusações não traziam em si a gravidade suficiente
para arrebatar-lhe a cadeira outorgada pelo povo. Não havia crime. Tudo era
forjado. Muitos de seus próprios julgadores já haviam cometido, quando
governantes, as mesmíssimas falhas ou equívocos. Mas, de forma ardilosa, tudo
estava arquitetado para defenestrar Dilma. Muitas daquelas figuras não tinham qualquer
condição moral para julgá-la. Outros, de dedo em riste, trajados de vestais e pousando
de bons moços, pareciam não ser o que verdadeiramente eram: ladrões do dinheiro do povo. Também não
podiam julgá-la. Não tinham moral para atirar a primeira pedra. Mas com
deslavado cinismo e pouca vergonha, julgaram-na. Em momento algum, porém,
aqueles furiosos algozes, ousaram acusá-la de corrupta. O julgamento foi até o
fim, e nada atenuou o chicotear de seus verdugos. Os olhos e os ouvidos daquela
gente estavam propositadamente fechados hermeticamente.
Enquanto tudo era
levado a efeito, algo se fazia bem nítido em cada episódio ali acontecido. Por
trás de tudo, existiam movimentações estranhas para garantir que o roteiro
seria cumprido com sucesso. Michel Temer, com seus coadjuvantes de ocasião,
todos frios, astutos, calculistas, agressivos, verborrágicos e igualmente
famulentos pelo poder, esgueiravam-se atuantes, à luz do dia ou mesmo nas
sombras.
Na tarde do dia 31 de
agosto deste 2016, o Senado Federal afastou, de forma definitiva, por 61 votos
a 20, a presidente da República, pelo povo eleita com mais de 54 milhões de
votos.
Mas o ritual não
estava terminado. Uma malandragem foi colocada em prática. Por sugestão do
próprio Renan Calheiros, presidente da Casa, fez-se uma segunda votação para garantir,
à presidente deposta, o direito de continuar a exercer funções públicas. E, ao
contrário da votação anterior, a nova proposta saiu vitoriosa.
Que generosidade
deles! Não, não foi isto. Não houve um gesto de bondade, nem um ato de justiça.
Aquilo era uma manobra. Não podiam desperdiçar tão maravilhosa oportunidade. Precisavam
aproveitar o momento para produzir algo que beneficiasse, em julgamentos
futuros, figuras mafiosas, como Eduardo Cunha e outros deputados e senadores,
na mira da operação “Lava-Jato”. Em vez de uma ação de benevolência com Dilma,
tratava-se, na verdade, de uma jogada espúria. A própria Dilma externou sua
estranheza diante daquele gesto inesperado.
Não
muito distante dali, Temer assistia, inquieto e ansioso, lá no Palácio do
Jaburu, ao desfecho daquele jogo de cartas marcadas. Precisava consumar de vez
o seu intento e viajar ainda naquela noite para a China, como presidente
efetivo. E realmente viajou. Foi comemorar e bazofiar por aí, feliz da vida com
mais esta vitória da insensatez e da hipocrisia da politicalha brasileira.
A
respeito deste personagem chamado Michel Temer, o senador Antonio Carlos Magalhães,
falecido em 2007, perspicaz raposa da nojenta política brasileira, num embate
de agressões verbais, descreveu-o em pouquíssimas palavras:
-
“Não me impressiona sua pose de mordomo de
filme de terror”.
Impossível que alguém fizesse uma descrição mais adequada.
Ele não tem somente a pose. Tudo nele externa um quê fantasmagórico, carregado
dos mistérios de quem se move nas sombras da noite. Traz consigo um semblante
imperturbável de quem sabe mascarar emoções, e em sua bandeja maligna de
“mordomo de filme de terror” estão os licores envenenados. O diagnóstico que fez
o velho político baiano foi sintético, mas altamente descritivo. Michel Temer,
com seu jeitão esfíngico e indefinível, faz qualquer um se sentir diante dos mordomos
de filmes do Hitchcock.
O Temer, pelos
caminhos normais, jamais seria presidente de nosso País. Não teria estatura
para isso. Ser vice-presidente, por duas vezes, significou nada menos que duas tentativas
pré-concebidas para se tornar presidente. É como se diz: armou e deu certo. Dilma
caiu na armadilha. O Temer montou tudo, desleal e sorrateiramente, como sempre
agem os mordomos de filme de terror. Fez valer sua caricatura grotesca,
descrita pelo famoso e histórico senador. Arquitetou, juntamente com seus coadjuvantes,
nos enormes e soturnos subterrâneos desta mansão chamada Brasil, a conspiração,
a música fúnebre, o ritual macabro do grande episódio que culminou com a queda
de Dilma Rousseff. Ainda bem que já não vivemos mais no tempo da forca, da
guilhotina, da fogueira, do fuzilamento.
Olho agora para a grande
mansão que abriga a síntese maior da politicalha nacional. O mordomo, rodeado
de asseclas, com um sorriso maroto num recanto da boca, ri-se de todos,
orgulhoso da vergonhosa façanha. Muito além dos segredos, das assombrações e das
almas penadas do velho casarão, ele conhece meticulosamente cada palmo dos
jardins, dos bosques, dos pomares, dos esconderijos, dos subterrâneos, das
entradas e saídas secretas da velha edificação. É familiarizado, não só com os
vassalos e serviçais, mas também com os desvios das regras de convivência do
velho palácio. Assim, lhe foi fácil arquitetar a grande sacada para assumir o
lugar maior como mandatário da mansão.
Agora, malgrado seu, grande
parte dos moradores das terras do grande castelo não vê legitimidade e não o aceita
como novo mandatário, exigindo sua imediata substituição.
Cuidado, Senhor
Michel: Ao final das fitas de cinema, o “mordomo
do filme de terror” tem sempre suas próprias maldades voltadas contra si.
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