(*) José de Anchieta Batista
Nunca fui muito
chegado a velórios e enterros. Quando as circunstâncias obrigam-me a estar
presente em algum deles, minha passagem ao redor do caixão é sempre muito
rápida. Só me demoro o tempo necessário para cumprimentar os familiares e
amigos. Depois disso, me movo um pouco entre os presentes, mas a porta de saída
fica sempre me chamando. Não me faz bem dar adeus a um corpo inerte, rijo, desfigurado,
sem vida, principalmente se se tratar de alguém com quem eu tenha convivido
mais de perto. Também me incomoda profundamente, naquele ambiente de imensa tristeza,
a dor silente ou lamuriosa daqueles que ficam. É meu jeito de ser. Há, porém,
as mais diversas formas de lidar com estes momentos tristes da vida.
Diferentemente
de mim, aqui no município de Senador Guiomard (AC), Dona Marina sente-se
altamente aborrecida se não lhe comunicarem a existência de algum velório. Fica
braba. Seja quem for o defunto, ela quer cumprir o que chama de “ato de piedade
cristã”. Dure quanto durar a visitação ao falecido, aquela senhora fica ali,
fazendo companhia ao morto. As pessoas estranham essa sua devoção por velórios,
mas isso é dela. Perguntada sobre o motivo disso, ela responde: Quando for a minha vez, quero me ver rodeada
por muita gente. Quero muitas pessoas me acompanhando até o cemitério. Deve ser triste a solidão neste momento.
Por
falar em personagens voltadas para velórios e enterros, ninguém pode esquecer
as carpideiras, “cantadeiras de incelências” ou “choradeiras”, profissionais femininas
que durante os velórios são pagas para, em torno do caixão, rezar, cantar e
chorar por um defunto alheio. Dizem que
em alguns recantos ainda existem, mas não sei precisar onde. Os mais antigos,
como meu pai, sempre me falavam dessas senhoras e afirmavam que nos pés de
serra do Nordeste, velório sem carpideiras não estava completo. Vestidas de
preto, da cabeça aos pés, não dispensavam o negro véu, nem um rosário nas mãos.
Choravam e se lamuriavam de forma tão doída que, nem a viúva, nem a mãe, nem as
filhas do defunto, conseguiam chorar com tanto sentimento de dor.
Essa
profissão, bizarra por excelência, não nasceu no Brasil. Li registros de que
foi trazida de Portugal e é tão antiga que o Velho Testamento lhe faz menção:
- “Assim diz o Eterno dos
Exércitos: Considerai e chamai as mulheres pagas para chorar, para que venham
depressa; trazei as mulheres mais sensíveis e hábeis nesta arte” (Jeremias -
9:17).
Há
também aqueles que adoram fazer discursos de despedida na beirada da cova.
Existiu,
lá em João Pessoa (PB), um sujeito chamado João Costa e Silva, cujo apelido era Mocidade. Essa figura folclórica,
detentora de desequilíbrio mental, possuía conhecimentos aprofundados sobre a
história da Paraíba e era de uma oratória brilhante, muitas vezes sem nexo, mas,
espetacular. Tratava-se de um sujeito que lia muito e, por isso, adquirira um invejável
vocabulário. Aquele tribuno popular era um maníaco por exibir sua verve. Subia em
qualquer batente, caixote de madeira, tamborete, ou algo que o valha, e lá se
ia mais um discurso verborrágico. As autoridades viam-se muitas vezes em apuros
nos eventos públicos. O famoso orador sempre dava as caras e queria falar. Mocidade
era assim chamado porque, mesmo diante de uma plateia de idosos, iniciava seus
discursos sempre da mesma maneira: “"Mocidade da minha terra...".
Pois
bem, aquele personagem tinha por mania participar de enterros, nos quais sempre
encontrava um jeito de fazer um discurso vibrante na beira da sepultura. Ali,
enchia o morto de elogios, mesmo que nunca o tivesse conhecido. Soubesse de algum enterro, principalmente de
gente da alta, lá estava Mocidade, com sua eloquência desvairada.
O
famoso Mocidade morreu em 1981. Não sei se lhe dedicaram algum pesaroso discurso
de despedida. Restou-lhe atribuída uma espirituosa frase: “Na Paraíba, até para ser doido, precisa ter juízo”.
Defuntos,
velórios, carpideiras, enterros, cemitérios, coveiros, assombrações, etc, são
responsáveis por um acervo riquíssimo e inesgotável de crendices, histórias e “causos”
os mais diversos.
Quando
morei em Altamira (PA), um velhinho, ex-combatente da II Guerra Mundial, garantiu-me
que certa vez estava presente num velório, no interior do Amazonas, e lá pelas tantas
da noite, o morto sentou-se apavorado dentro do caixão e, com olhos
esbugalhados, preparou-se para descer. O rebuliço foi enorme. Correu gente pra
todo lado. No outro dia o ex-defunto recomeçou sua vida normalmente, mas uma
senhora, que estava presente no momento do alvoroço, sofreu um ataque cardíaco
e morreu. O velório dela deu continuidade ao do ressuscitado.
Uma
curiosidade a respeito disso:
-
O “professor Google” acaba de me afirmar que esse fenômeno, sepultador de muita
gente ainda viva, tem o nome de catalepsia.
Não sei se a Medicina descobriu algum jeito de evitar isso, mas a possibilidade
de ser enterrado assim é apavorante. Já pensaram no tamanho da agonia?
Caros
amigos, confesso meu enorme respeito por quem terminou de cumprir aqui na Terra
a sua jornada. Alio-me sempre à dor e à saudade de todos os parentes e amigos,
mas me confesso avesso a funerais. Quando digo isso por aí, sempre me alertam
de que precisamos prestigiar os defuntos, a fim de sermos retribuídos quando
for a nossa vez. É exatamente assim que pensa a Dona Marina, lá de Senador
Guiomard. Não sei se procede. Eu, porém, não tenho essa preocupação. Quando
chegar a minha vez, além de já não me afetar a solidão deste mundo, com
certeza, alguém vai querer enterrar o que sobrou do “envelope” que ocupei por
mais de setenta anos. De morto, todo mundo quer se ver livre. Incomoda demais.
Bem, amigos, esse é meu
jeito.
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