sábado, 24 de março de 2018

A BOTIJA DE CAMUCÁ - Ramalho Leite

Há alguns dias, recebi de meu amigo paraibano, o livro de sua autoria “A Botija de Camucá e outros assuntos aleatórios”. Trata-se de uma coletânea de crônicas suas, publicadas no jornal A União (João Pessoa-PB). São pedaços de minha Paraíba, reunidos num desfile histórico de personalidades e fatos interessantes que, como é de seu estilo, trazem as tintas de seu fino humor.
Parabéns, amigo Ramalho. Li-o de um só fôlego. Obrigado.
Em homenagem, transcrevo neste espaço a engraçada história que deu nome ao seu livro:
 A BOTIJA DE CAMUCÁ
(*) Severino Ramalho Leite
A vida corria tranquila na Vila de Camucá.  O nome, de origem indígena, significa “terra deserta’. O rio, do mesmo nome, deu origem ao povoado que foi surgindo depois que o dr. José Amancio instalou usina de beneficiamento de arroz e uma fecularia, garantindo centenas de empregos. Nas terras que adquiriu, plantava a matéria prima de suas indústrias. Para expandir seus negócios, precisava de energia. Barrou o rio Camucá, uma continuidade do Rio Canafístula, e trazendo máquinas do exterior, instalou a primeira usina hidroelétrica do Nordeste, antes mesmo de Delmiro Gouveia descobrir Paulo Afonso. Somente o trem, que faria parada ali a partir dos idos de 1913, perturbava a calmaria que, durante o dia, acalentava o sono da “bela adormecida dos eucaliptais” como a denominou o imortal Manoel Batista de Medeiros.
Camucá tomou ares de povoado promissor após o advento da luz elétrica e a partir de 1949 tornou-se um distrito integrante do município de Bananeiras. Quando a água acumulada para a produção de energia invadiu a cidade, que acompanhava a silhueta do rio, dr. José Amancio mandou projetar uma nova, na parte mais alta, e suas ruas obedecem a um traçado invejável. No ponto mais elevado do terreno, cumprindo promessa de sua primeira esposa, dona Luizinha Moreira Ramalho, mandou erguer uma capela em louvor a Nossa Senhora do Carmo e, posteriormente, construiu amplas escadarias. Em cada desnível da subida, os fiéis podem contemplar a estátua de um profeta ou de um evangelista. Quem sobe ou desce esses batentes pode parar para descansar, sob as vistas de Abraão, Moisés ou Noé, subindo; João, Lucas e Mateus, descendo.
Em um burgo que só acordava com a sirene da fecularia liberando seus trabalhadores ou com o apito do trem na última curva de chegada, qualquer novo morador era notado imediatamente e objeto da curiosidade geral. Foi assim com José Diogo ou Zé Diogo, para os mais íntimos. Chegou de repente, sem recomendação ou clareza de sua origem. Em torno dela surgiram várias versões e, a mais provável, era que uma moléstia incurável naquela época, recomendava que respirasse ares mais amenos como o da pequena Vila de Camucá, vizinha de Bananeiras, onde o Major Zé Fábio inventara uma vacina à base de saliva humana, que curava todos os males. Excelente conversador, Zé Diogo, onde chegava era cercado e ninguém duvidava ou contestava a veracidade de suas narrativas. Sofrera o diabo nos seringais da Amazônia, e em trinta, saía de Cruz das Armas, onde morava, e entrava pelos fundos do Palácio da Redenção para levar, em caixas de sapatos, cargas de munição que arrecadara, para ajudar Joao Pessoa na luta de Princesa…
Um dia surge na vila um burburinho. Lá perto do Engenho de Poço Escuro, já na vizinhança de Solon Benevides, encontraram um enorme buraco. Misturada à terra dele retirada, pedras de carvão, casca de cebola e cabeça de alho. Tudo indica que alguém arrancou uma botija, era a informação que corria de boca em boca, tirando a tranquilidade do lugar. Arrancar uma botija indicava que um defunto deixara enterrada a sua fortuna, e aparecera em sonho a um felizardo encarregando-o de desenterrá-la, para que pudesse, enfim, sua alma angustiada descansar em paz. Quem teria sido esse ganhador da loteria do além? Qualquer atitude suspeita, resultava na indução de autoria. É público e notório que quem arranca uma botija está proibido de revelar, sob pena de acompanhar o doador à sua última morada.
Com a história da botija no auge, José Diogo passou a sorrir encabulado toda vez que se falava no precioso achado. Foi Zé Diogo, concluiu alguém. A cara dele não nega, afiançava outro. E o nome de Zé Diogo foi crescendo como novo milionário da terra. Se fora mesmo ele, todos concordavam, estaria impedido de gastar o ouro que exumara do Poço Escuro.
Tinha Zé Diogo uma carta de crédito vinda do além. Passou a comprar fiado em todas as bodegas. Não regateava preço. Comprava e mandava anotar. E se alguém indagava quando pagaria, respondia com um sorriso maroto: “Você sabe que não depende de mim”…
O engodo não poderia se perpetuar.  As contas estavam aumentando e se aproximava o período da quarentena para o botijeiro. Uma manhã… a Vila notou a ausência da sua celebridade instantânea. Zé Diogo pegara o trem na madrugada e desaparecera nas curvas da ferrovia. Outros viajantes deram noticia dele até que o comboio escureceu, na passagem do túnel de Poço Escuro. Ao clarear do dia, não havia mais sinal do misterioso passageiro.
(*) SEVERINO RAMALHO LEITE nasceu em Bananeiras (PB), no dia 6 de outubro de 1943. Jornalista, advogado e escritor, é membro da Academia Paraibana de Letras desde 2013

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