segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A CULPA É DO CAPIROTO - (José de Anchieta Batista)

José de Anchieta Batista
No início dos tempos, quando o verdadeiro Criador iniciou sua interminável obra, jogou no jardim do Éden um sujeitinho chamado homem, um cara petulante, boçal, metido a maioral, que, dotado do que chamamos de inteligência, passou a comandar tudo o que estava a seu redor.
Foi-lhe dada a gerência de tudo, e ele se viu, ali, meio que perdido, diante daquele sem número de mistérios para desvendar e compreender. Foi obrigado, logo de início, a descobrir que muitas coisas eram indispensáveis na manutenção da vida, enquanto outras podiam significar a morte. Era preciso estar atento para distinguir o que lhe era bom do que lhe era nocivo. Aprendeu a escolher os melhores lugares onde construir seus abrigos, compreendeu logo que a água e os alimentos deviam estar por perto, construiu obstáculos para se proteger dos muitos inimigos, fez armas para sua defesa e subsistência, descobriu forma de obter fogo etc.
Assim, o homem, desde sempre, viu-se obrigado a evoluir, ora tendo sucesso em suas descobertas, ora quebrando a cara em seus experimentos. E foi nesse ambiente de infinitas incógnitas que o espécime hominídeo passou a cuidar de seus permanentes desafios e se viu aterrorizado por fenômenos incompreensíveis, muitos deles bem acima de seu poder de enfrentamento. O medo sempre fez parte de sua vida. Além das feras naturais, aterrorizavam o seu cotidiano, as chuvas torrenciais, os relâmpagos, os trovões, os raios, os vulcões, os terremotos, os maremotos, etc.
Diante de constantes surpresas e mistérios, o homem encontrou sobejas razões para supor que alguma força superior fosse responsável por tudo. Sentia uma necessidade natural de buscar explicações e dar autoria ao que era motivo de felicidade ou infelicidade.  Surgiu a ideia das divindades e dos capetas. Deu-se forma a um Deus, todo poderoso, “imagem e semelhança” do próprio homem. Paralelamente, criou-se o Diabo, também com imagem e semelhança humana, para fazer o contraponto, transitando na contramão, responsável por tudo o que não presta. O bem e o mal passaram, então, a ter seus mentores. Consagrou-se a inabalável certeza de que aquilo que é bom vem de Deus e o que é ruim vem do Diabo. O depois da morte e a concepção de que o homem possui uma alma, lançaram novas e perturbadoras interrogações. Foi então que se instituiu, com vários modelos, neste enredo confuso da vida eterna, um Céu para os bons e um Inferno para os maus.
 Estamos não sei em que ano do início de tudo.  No estágio atual dessa novela, as religiões proliferaram desmedidamente, cada uma com sua barulhenta empáfia, atribuindo-se o papel de dona do verdadeiro caminho, pregando os esplendores do Céu e os abismos do Inferno.
Nesse contexto, conheço um sem número de pessoas que seguem doutrinas religiosas, sem hesitar ou questionar qualquer das “verdades” que lhes repassam. Creem piamente em que os dirigentes já foram iluminados por Deus e isso lhes vem suprir todo e qualquer questionamento. Prende-me a atenção uma particularidade. Depois de fascinado e inebriado pela crença, tudo o que acontece na vida do sujeito passa a ter uma influência direta de Deus ou do Diabo. Também se estabelece um tratamento injusto e desleal entre o santificado e os outros filhos de Deus. Se ele compra um carro, foi Deus que lhe deu. Se passa num concurso, foi Deus que o ajudou. Se sofre um acidente, está em provação ou sofrendo um ataque do capeta (mas deus o socorrerá). Se arranja alguém para casar, foi Deus que enviou. E por aí vai. Passa a existir em tudo, um agente invisível, que não é o próprio sujeito. Em sua vida, os acontecimentos passam a ter outro significado: prêmio divino, provação, bênção, tentação do maligno, castigo de Deus etc.
Soube recentemente de um fato tragicômico em uma dessas igrejas espalhadas por aí:
Depois de seis meses de adultério, num romance ocultíssimo envolvendo um irmão e uma irmã de fé, há muito considerados exemplares no seio da igreja, alguém os flagrou e se achou na obrigação de bater com a língua nos dentes para o Pastor.  
Em razão disso, teve lugar um encontro secreto, rigorosamente restrito aos personagens, evento este a que deram o nome de “reunião do perdão e da misericórdia divina”. 
Após um rosário de citações bíblicas, seguiu-se um ritual de reprimendas ao Capeta e seus asseclas. Depois, feito o afastamento do mal, ouviram-se as santas e severas recomendações do pastor e, finalmente, as bênçãos dirigidas aos envolvidos.
Os dois casais se perdoaram abraçados, sob chuva de lágrimas, com juras de inquebrável fidelidade. Todos estavam perdoados entre si.
Mas sabem o que justificou e facilitou aquele santo desfecho?
Na análise dos fatos, chegou-se à conclusão de que os dois pecadores agiram sob a força da “tentação do inimigo”. Estavam, agora, novamente limpos da culpa e tinham só que vigiar para não caírem novamente nos laços do Satanás.
Não estou contra o ato do perdão em si. O que me enche o saco é essa história de que tudo é culpa do Capiroto.
Coitadinho do Diabo. Imagino-o resmungando:
- Bando de filhos da puta, vocês não assumem nada? Tudo eu?! Tudo eu?!



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